Na celebração de 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Brasil vai ao pódio internacional dos avanços da democracia e da dignidade da pessoa.
Entre os progressos dos ditos freios e contrapesos entre os Poderes, nosso Conselho Nacional de Justiça permitiu, pela primeira vez, um controle do Judiciário, saído do antigo fortim de intocabilidades. Demoliram-se também, como melhor resultado da crise do mensalão, os privilégios de foro no julgamento de parlamentares e ministros. Mas, sobretudo, o poder de polícia deixou de parar na soleira dos gabinetes e brande as provas inequívocas da corrupção no ninho quente das CPIs e das tranqüilas absolvições finais dos acusados.
Todas essas conquistas só nos expõem, como contrapartida, aos novos e sofisticadíssimos atentados àqueles direitos típicos do mundo midiático e sua modernidade.
Aí está o crime de imagem, desde o arbítrio das algemas até o boato transformado em manchete e o abuso injusto no trato criminal entre o simples suspeito e o processado. Desaparece o direito à intimidade -reconhecido pela declaração de 1948- no país da sôfrega escuta telefônica. Não tem limites a "plugagem", esgalhada na árvore de ligações feitas pelos investigados. Do uso da senha passa-se, na prática de uma quase inércia, ao da interceptação das conversas.
Os interrogatórios no Congresso Nacional no caso Satiagraha evidenciariam a pretensão do grampo universal e como, só agora, começa um repúdio nacional à passagem frouxa entre plugar e escutar.
Fere lá fora a nossa imagem democrática emergente esse índice, quase norte-coreano, de meio milhão de telefones nos ouvidos policiais. E, na sua seqüência, esse torvo tráfico emergente da violação à intimidade das pessoas, envolvendo, ao mesmo tempo, novo mercado de corrupção da Polícia e das próprias telefônicas.
Mais do que nunca -e ao mesmo tempo-, a Carta do dr. Ulysses se consagrou pelos institutos em que previu os perigos da civilização midiática, ligada ao condicionamento sem volta da opinião pública e à tirania dos dossiês inalcançáveis e da informação unilateral.
Institui-se em 1988 o habeas data, ao lado do habeas corpus, como resposta da pessoa à manipulação de seu informe e a um limbo permanente de ameaças e negociação de ameaças.
O dito Estado democrático de Direito, por outro lado, não pode se conformar com o fato consumado, sob os álibis de progresso, de massacres sub-reptícios à dignidade individual.
Entramos no século 21, cada vez mais, num mundo da subjetividade expropriada pela simulação virtual e pela ditadura da versão sobre a verdade. Fica, até hoje, como quase letra morta o direito de resposta, com que a Constituição de 1988 garantia o corretivo da falsidade da informação, "na rapidez e na intensidade do agravo".
Esse texto pioneiro da Carta Cidadã é hoje repetido na Lei Fundamental de várias nações emergentes. Mas nos confrontamos, no país, com a resistência da mídia a desmentir-se ou penitenciar-se do abuso. E não temos, ainda, no Brasil, ao contrário do que ocorre nas nações escandinavas, a penalidade da multa enorme a desencorajar, de vez, o crime da imagem, incorrigível na televisão.
São ainda poucos os jornais que, pioneiramente, acolheram o instituto do ombudsman, e as agências de noticiário públicas tateiam, ainda incertas, entre o que é a neutralidade de informação que pede a democracia profunda e a propaganda governamental.
O progresso hoje internacionalmente reconhecido do país de Lula como democracia não o é mais, apenas, o que suprimiu os excluídos de todo o tempo atingidos pela miséria e pela fome. Mas também o que quer acabar com a impunidade dos de todo o sempre no regaço do "sabe com quem está falando?" ou do "depois a gente vê".
Folha de S. Paulo (SP) 27/08/2008