Parece um ato falho da esquerda nacional: volta e meia clama pela necessidade de "endireitar" as coisas, ou seja, endireitar a vida nacional, o Congresso, o sistema como um todo, os indivíduos em particular.
Por ironia do destino, sendo eu apolítico, desprezando tanto a esquerda como a direita e o centro, em 1964, fui obrigado pelas circunstâncias daquele ano a tomar uma posição contra o golpe de direita -como teria tomado contra a esquerda se ela cometesse os mesmos crimes que a direita cometeu durante o longo regime militar.
Confesso que, por uns tempos cheguei a isentar a esquerda da burrice inerente a qualquer ideologia, seja ela qual for. O tempo passou e, para meu espanto, noto que a esquerda, que empunha a bandeira da luta social e, por isso, merece respeito e apoio, continua patinando na mesma besteira de atribuir seus fracassos táticos ou estratégicos ao Império do Mal, que pode ser a política realmente desastrada de Bush, no plano internacional, e agora, no plano nacional, aos fabricantes de armas que rolaram dinheiro farto para a campanha do referendo, subornando técnicos de marketing e eleitores em geral para garantir seus lucros assassinos.
Li por aí que um escriba, desesperado pela derrota de seu ponto de vista (um ponto de vista tão idiota quanto o ponto de vista contrário, uma vez que o referendo foi uma idiotice total), informou que as filas estão enormes nos guichês das fábricas e lojas de armamento, pessoas recebendo os 30 dinheiros da traição ao bem-estar do povo brasileiro.
Comentaristas mais sensatos não chegam a exagero igual, mas insinuam que, mais uma vez, o dinheiro venceu a parada -o que pode ser uma verdade genérica em tempos de corrupção como o nosso.
Para uso próprio, embora classificando o referendo de uma imbecilidade atroz, vi nele uma forma de protesto da nação contra o governo atual. Não o explico, mas o justifico.
Folha de São Paulo (São Paulo) 29/10/2005