Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Encontro à maneira de Proust

Encontro à maneira de Proust

 

No meio da multidão, não parecia ela. E, por um instante, duvidou que fosse: tanto lugar para se meter e ela ia escolher justamente aquele canto, onde, na certa, se encontrariam.


Algumas pessoas passaram entre os dois, ela talvez se desviasse, havia tempo ainda para a fuga recíproca, mas, subitamente, o casal que arrastava uma criança e um enfado parou, e ela surgiu atrás do grupo. Não como antigamente. Não mais aquele sorriso debochado, o brilho no olhar que parecia pedir e recusar ao mesmo tempo, e insistir e exigir e adiar e aceitar e querer e fugir e voltar e amar.


De antigamente, só o raminho de violetas que comprara em Paris ou em San Sebastian — já nem lembrava mais. Ela dera uns giros pela Europa depois que tudo acabara e nada ficara para prendê-la aqui. Ele também embarcou, caixa mais baixa perambulou por aqui mesmo, tomou um pifão em Punta del Este e tentou a sorte no cassino de Carrasco.


Ganhou bastante na roleta, com isso sofreu mais — no fundo, preferia ter perdido no jogo e ter ido dormir, pobre e solitário, mas na ilusão de que, em Paris ou em San Sebastian, ela o amava.


Pois o raminho de violetas era o mesmo. Só que não estava mais na cintura, preso ao cinto. Antigamente, quando tentava abraçá-la, ela tinha primeiro que tirar o raminho "para não amarrotar". E muitas vezes as mãos se encontravam, ávidas e famintas, e o raminho era esmigalhado dentro de dedos que se buscavam e se cruzavam.


Agora, o ramo está na lapela, como um escudo ou um enfeite de subúrbio. Perdera a classe? Não, ainda é a mesma, mesmo é o vestido de tom azul que a tornou famosa. Mesma é a pulseirinha azul do relógio, cada vestido com pulseirinha igual, do mesmo tecido. Parecia um pouco mais sofrida, mas, na realidade, era apenas uma mulher quietada e menos aflita. O tempo atrapalha e cura, mas atrapalha mais do que cura.


Não há embaraço no "como vai" inicial. Embaraço houve na hora da mão, estendo a mão ou não estendo? Ou deixo que ela estenda primeiro? E a hesitação comum retardou o cumprimento até que se decidiram quase ao mesmo tempo, e as mãos se juntaram e se apertaram num presente que nada mais significava.

 

Nova hesitação na hora de quem livrava primeiro — e a hesitação prolongou mais do que devia o aperto. Quando as mãos se separaram, houve um pouco de saudade nela e de desejo nele, ambos se olharam nos olhos para não ver o passado e aproveitar o clarão súbito do presente.


E surgiu o outro homem, vinha mais atrás, empertigado numa elegância recente e mal assimilada. A apresentação foi feita apressadamente, "esse é o meu noivo", e ele percebeu que o noivo não morava no assunto, "ela ainda não contou os podres", e o pensamento, ao mesmo tempo em que o tranqüiliza, também o infelicita, "devia ter contado logo, na primeira noite, sabe, fui de outro homem, amei perdidamente outro homem, mas ela não contara, é que não amara perdidamente nenhum outro homem, ou seja, ela não o amara, nem perdidamente nem salvadoramente".


Apertadas as mãos, ditos os nomes às pressas, com medo de uma identificação importuna e perigosa, seguem os dois, e logo a multidão os traga. Lá longe, a cabeleira prateada e alta da mulher ainda se destaca dos ombros calhordas do noivo, mas é apenas uma insinuação dela —"no meu tempo ela era loura, esses cabelos cor de prata são para o outro, parece agora uma inglesa de meia-idade, esses cabelos são mesmo para o outro. Ou outros". E sofre ao lembrar que o noivo, de tão calhorda, não deve ser o único.


E está novamente sozinho. Procura recapitular tudo, pesquisa o jeito dela sorrir, o brilho do olhar, a cor do tato de sua mão. O breve encontro é virado e revirado, perfurado de todos os ângulos.


E, como demorara em reconhecê-la na multidão, é rápido em identificá-la quando se afasta. Embora de costas, é como se olhasse novamente para ele, dizendo: "Sou eu!". E, de repente, um clarão: "Talvez ela me telefone, amanhã".


Folha de S. Paulo, 8/1/2010