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Empatia seletiva

 

O senso de empatia do presidente Bolsonaro somente se revela quando um dos seus é atingido, como quando tomou um avião para ir ao Rio para o enterro de um paraquedista ou quando, por meio das redes sociais, lamentou a morte de Marília Mendonça, a rainha do feminejo, a música sertaneja por mulheres, ou do MC Reaça, assassinado. As mortes dos ícones da música brasileira João Gilberto ou Elza Soares não mereceram do presidente um tuíte.

Também não visitou hospitais durante a fase mais aguda da pandemia de Covid-19 e demorou meses para lamentar as mortes, que batiam recordes diários no país. Ao contrário, dizia com frequência que milhares de pessoas morriam diariamente no país de doenças variadas, tentando normalizar a tragédia que se abatia sobre nós.

Não é de admirar que agora, com a tragédia que atingiu o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira, tenha demorado a se pronunciar e, quando o fez, tenha sido para lamentar que os dois fizeram “uma aventura” num território perigoso. Com o passar dos dias, a pressão internacional aumentando, Bolsonaro foi tentando amenizar sua carantonha, chegando a dizer que tudo indica que “fizeram uma maldade” com os dois. Agora, tardiamente, anuncia que visitará a Região Amazônica.

Mas voltou a demonstrar insensibilidade ao criticar o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, que deu cinco dias ao governo para explicar sua atuação no caso. Irritado com o que julga ser uma interferência indevida, o presidente disse que milhares de pessoas desaparecem todos os dias no Brasil, e Barroso nunca se preocupou com elas. Uma tentativa canhestra de se justificar, fingindo que não sabe que, no caso atual, não se trata de pessoas desaparecidas por razões fortuitas, mas de um jornalista britânico e um indigenista brasileiro que trabalhavam na região, um fato de repercussão internacional, que envolve tráfico de drogas, garimpo ilegal, invasão de terras indígenas, falta de controle do governo nessas áreas, tudo o que é criticado no mundo inteiro.

Bolsonaro fica fingindo que são “apenas” mais duas mortes, mas essa tragédia não tem relação com o número de desaparecidos no Brasil. No mundo deve ser a mesma coisa; mesmo nos países desenvolvidos, deve sumir muita gente. Mas não some gente assassinada por grileiro, por traficantes de droga e de madeira. Não se pode normalizar uma coisa dessas. Temo que a informação da viúva do jornalista britânico esteja correta, pois, se os corpos já foram mesmo encontrados, e a Polícia Federal nega por razões inexplicáveis, seria mais um efeito colateral negativo para a imagem brasileira no exterior.

É uma tragédia brasileira. A atitude do governo desde o começo desse caso foi um desastre. Dizer que o local em que os dois estavam era “perigoso” é praticamente uma admissão de culpa, porque o governo não controla a fronteira da Amazônia com os países vizinhos, território livre para tráficos. O ambiente na Região Amazônica piorou muito porque seu governo é leniente com garimpeiros e exploradores de madeira ilegais.

O tráfico internacional de drogas aproveita-se dessa leniência do governo com os territórios indígenas para se expandir pelo Brasil, numa conjunção de organizações criminosas que se interligam. Há tráfico de tudo: ararinhas-azuis, que valem uma fortuna e correm o risco de extinção, tornando-se mais valiosas; peixes ornamentais; madeira; ouro. E o governo brasileiro não tem um planejamento para combater os crimes nesses territórios, dominados pelas mais diversas gangues, inclusive internacionais.

A política leniente do governo Bolsonaro com a exploração da Amazônia vem desde o início do mandato e fez com que o já precário sistema de proteção da floresta e dos indígenas se tornasse praticamente inexistente. A visão distorcida de Bolsonaro, de que existe muita área valiosa para poucos índios — que ele não valoriza — , fez com que os crimes aumentassem na região. O governo não compreende que a imagem no Brasil sofre desgastes enormes cada vez que o recorde de devastação da Amazônia aumenta ou que um bandido da floresta assassina um jornalista estrangeiro que se especializou justamente na cobertura da região para jornais internacionais como The Guardian ou The New York Times.

Nem que fosse por esperteza política, Bolsonaro deveria ter sido mais enfático nas suas declarações e preocupações com a Região Amazônica. Mas aí não seria quem é.

O Globo, 14/06/2022