Os ingleses inventaram o futebol. Os americanos, o basquete. Os espanhóis, as touradas. E os romanos, as lutas livres. Tudo bem, cada coisa em seu lugar. O carioca inventou uma modalidade esportiva bem mais interessante, embora caída em desuso devido à violência urbana e ao medo de assaltos. Um esporte complicado, gostoso, que consistia em torcer por uma corrida imaginária de submarinos, à noite, ali no Arpoador, no Leme, mais tarde em toda a orla.
Não havia ocorrido, ainda, o boom dos hotéis de alta rotatividade. Ali pelos anos 50 e 60, quebrava-se o galho como se podia, em apartamentos de amigos ou de aluguel, coisas sórdidas, manjadas pelos vizinhos. Perdiam-se oportunidades por causa disso, por não ter um lugar para fazer aquilo que, grosseiramente, alguns chamam de "afogar o ganso" .
Alguns poucos e ditosos sobreviventes de uma era romântica e bela ainda possuíam garçonnieres, cujas chaves eram disputadas pelos amigos dos donos . Mas o grosso da manada se submetia aos treme-treme da época, prédios em decomposição onde havia apartamentos idem. Era duro convencer a outra parte que a paisagem não importava, o amor era mais importante, superava a esqualidez das paredes, a sordidez dos móveis e dos lençóis. O amor tudo pode.
Havia dois ou três hotéis caindo aos pedaços ao longo da avenida Niemeyer e adjacências. Eram tão desoladores quanto os quartos de aluguel. Ficavam longe, as mulheres temiam se aventurar a dar um passo além do Leblon - fronteira urbana e decente para qualquer mulher, casada, solteira ou viúva .
Foi aí que, na esteira da bem-sucedida indústria automobilística nacional, inventou-se o esporte acima citado, o de torcer por uma corrida imaginária de imaginários submarinos que todas as notes empolgavam o eleitorado na faixa que ia do Leme ao Leblon.
Digo torcer porque tudo era realmente torcido. Os carros, predominantemente nacionais, eram pequenos, pequeníssimos em alguns casos. Quem tinha um Simca Chambord, como eu, era um afortunado, um latifundiário da luxúria, deitava e rolava, contava ponto na hora de convencer a parceira a torcer e se torcer no emocionante esporte.
Mas o grosso da boiada ia mesmo torcer e se torcer no estreito espaço de Fuscas e Gordinis. Arranjar vaga era difícil, sobretudo às sextas-feiras e sábados. Domingo era mole. Mas quem tinha dois carros botava um na vaga, antes da noite cair.
Não havia Aids nem assaltos, daí que as coisas ficavam mais fáceis. De espaços a espaços, havia carrocinhas que vendiam "Genial" (ou seria "Geneal"?), uns sanduichinhos de queijo ou presunto com suco de laranja, complemento indispensável como a pipoca para o cinema. Moça nenhuma recusava o inocente convite de comer um "Genial" diante do mar escuro, "espelho de Deus , rude e terrível" - Como queria um poeta daquele tempo.
O fato é que um sanduíche antes preparava o sanduíche do depois, que recompunha as energias gastas com a torcida, verdadeiramente torcida, pois o esporte exigia um contorcionismo altamente criativo.
Certa vez, no Lido, de Paris, vi uma contorcionista coreana ou vietnamita, sei lá, sei que devia ser asiática pelo nome e pelos olhos repuxados. Ela fez misérias com o corpo. A amiga que eu levara ao espetáculo não acreditava, dizia que a mulher era desossada, feita de borracha.
Eu fiquei quieto, sem nada comentar. Evidente que a minha amiga era de outra época, de uma geração pós-submarino, pegara a florescente indústria moteleira, com direito a camas redondas, espelhos no teto, luz negra e menu à la carte.
Até hoje, tantos anos passados, não consegui apurar a veracidade de um fato que causou emoção suplementar entre os aficcionados de tão empolgante esporte. Conheci pessoas de grande credibilidade que garantiam ter estado no Arpoador na histórica noite. Um casal se enroscou de tal forma no banco traseiro de um Fusca, placa de São João de Meriti, que não houve jeito de se desenroscar. Parece que a mulher era muito grande e o homem muito pequeno. Ou o contrário, o homem é que era muito grande e a mulher pequena.
O fato é que os dois deram um nó e dele não conseguiram sair. Ficaram se debatendo lá dentro, mas isso não chamou a tenção de ninguém, pois, em geral, todos se debatiam naquelas situações. Até que a carrocinha do "Genial" passou. O empregado pensou que estava sendo chamado para vender um sanduíche ou um suco, se aproximou, viu o problema. Deu o alarme aos carros vizinhos.
Apareceram voluntários, desaparafusaram os bancos da frente do carro e assim conseguiram tirar os dois que continuavam enroscados, caídos na calçada.
Chamaram a radiopatrulha. Levaram o casal para o hospital Miguel Couto. Não sei como terminou o caso. Sei que terminaram as corridas de submarino noturno. Não por causa de complicações como essa ou afins. Em tempo: terminaram também as carrocinhas de "Genial". Tenho uma bruta saudade delas.
Folha de São Paulo, SP, 28/04/00