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Em nome do pai

 

(“O inferno está vazio e todos os demônios estão aqui”)

“A Tempestade”, de Shakespeare
 
Ainda repercute nas nossas retinas tão cansadas o inacreditável espetáculo da ignorância, para dizer o menos, dado pelo presidente da República e seus assessores na reunião do Conselho de Ministros no dia 22 de abril.

O tumultuado encontro lembrou a obra de Hieronymus Bosch (1450/1516) “A nau dos insensatos”, onde um grupo de loucos embarcados tenta escapar do naufrágio causado pela tempestade. Símbolo da insanidade, pintada em óleo sobre madeira, expõe a degradação vesânica  em busca da salvação. 

A exemplo da obra de Bosch, o vídeo da reunião no Planalto transmite, a quem o assistiu, a  sensação de que somos  passageiros do barco chamado Brasil  ameaçados de afundar no mar da estupidez. Enquanto isso, o timoneiro, o líder, pago para nos levar a porto seguro com régio salário, acolchoado com todas as mordomias e cartão de crédíto corporativo,  ignora a tragédia sem respeitar a dignidade do mandato que lhe foi entregue. Dispensa a compostura, contamina o ambiente com palavrões, ameaças, gritos, murros na mesa e leva os presentes a acompanhá-lo na oratória de baixo calão que com certeza  não usam em  casa, junto à família. Ou  usam?

Vivemos em país lacerado, onde nos negam o direito a informações sobre quantos brasileiros morrem por dia vítimas da doença, temerosos de que em breve, por incompetência criminosa, o termo pandemia seja substituído por genocídio. Obra macabra do desgoverno chefiado por um ex-capitão excluído do Exército e considerado pelo general Geisel um mau soldado.

Levado ao Poder Executivo em Brasília pela minoria do eleitorado, se contados os votos de Haddad, os nulos e brancos e abstenções,  o ex-capitão  convenceu-se  autorizado a falar pelo povo brasileiro, que na sua maioria não lhe passou procuração para tanto.

Na sua insensatez, e para espanto de todo o planeta,  decreta que a pandemia não passa de uma gripezinha, que a hidrocloroquina resolve. E leva o assunto na piada: cloroquina para quem é da direita, e tubuína para quem é de esquerda. Imaginar que Mandetta e Teich são de esquerda, mais do que um erro, para eles é um insulto.

O chefe do governo não se dá conta da realidade, ou se despe da autoridade que lhe foi conferida ao deixar claro que não é com ele, pois, em suas palavras, grande novidade,  todo mundo morre. O presidente da República ignora o tsunami virológico que  já matou perto de  40 mil brasileiros e continua, feroz, na sua fúria de demônio exterminador, em progressão geométrica. 

Com os contaminados submetidos a uma tempestade inflamatória, o vírus escolhe a parte do organismo mais fraca para atacar e matar. Muitos dos mortos vão para vala comum, como na época da gripe de 1918/19, devido à superlotação dos cemitérios. 

O país encontra-se entalado no abismo, sempre anunciado pelos profetas sociais, o buraco onde um dia cairia, e caiu, empurrado com todos bem juntos, segundo recomenda e age o guia genial dos povos que detesta até a palavra distanciamento.

O país de 210 milhões de habitantes, entre as dez maiores economias do mundo ( em renda per capita  perto do sexagésimo`), entregue a um presidente apedeuta,  vai para dentro da fenda abissal enquanto militares, em vez de médicos,  vão para as chefias do Ministério da Saúde

O que esperar de alguém excluído do Exército, considerado mau soldado? O mesmo adjetivo o define em qualquer outra função. Eleito para a Câmara dos Deputados, não aprendeu nada e   não esqueceu  a admiração pelos torturadores do regime de 1964 e o comportamento misógino ao declarar que não estupraria mulher feia. Eleito presidente e confrontado com o problema da pandemia, resolve dar sua receita para o vírus, condenada pelos meios científicos internacionais.

Se por acaso livrar-se da Covid-19, o usuário da maravilha curativa poderá morrer no contrapé do efeito colateral, entre os quais a parada cardíaca As receitas do nosso xamã oficial, o pagé de Brasília (com desculpas aos xamãs e pagés,  eles conhecem o seu ofício), marcam de forma sinistra esta fase trágica da história nacional.

Hoje, países vizinhos fecham fronteiras com o Brasil para evitar o contágio. Nações com as quais mantemos relações retiram funcionários para salvá-los desta usina de vírus em que se transformou o país.   Um muro sanitário se constrói, em escala mundial, para isolar o Brasil. Somos nação pária na comunidade internacional.

Confrontado pelo seu próprio povo,  republicanos   ou generais de bom senso, ao propor  chamar as Forças Armadas para conter os protestos contra o assassinato de George Floyd, Trump,  perverso polimorfo, corre a procurar um inimigo externo. Por que não o Brasil, o país doente que está devastando a Amazônia? Já proibiu aeronaves vindas do Brasil de pousar em aeroportos americanos.

Na imprensa internacional avulta o desprezo do presidente do Brasil pela cultura. O tema repercutiu em artigo  na edição do dia 12 de maio do “The Guardian”. O jornal  descreveu o ex-capitão e ex-deputado como um despreparado para exercer a presidência de país da importância do Brasil. “Em qualquer país civilizado, afirma 'The Guardian', na morte de escritores, músicos, poetas, artistas enfim, ele são lembrados por chefes de Estado ou de governo, pela contribuição que deram à cultura.”

O espírito avesso às artes em geral do capo dei capi brasileiro é descrito pelo jornal, que  cita o gesto mal-educado ao não  assinar o diploma recebido por Chico Buarque de Holanda referente ao Prêmio Camões, a maior láurea literária concedida aos escritores lusófonos. A ausência daquela assinatura, vale ressaltar,  causou grande alegria ao Chico, considerou-se duplamente premiado.

As críticas do jornal inglês prosseguem: “O presidente não tomou conhecimento da morte de grandes nomes da nossa cultura, a saber, entre outros, a do ator Flávio Migliaccio, de Dona Neném, sambista símbolo da Portela, dos escritores Garcia-Roza, Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna, de Moraes Moreira, de Aldir Blanc e do artista plástico Abraham Palatnik.” Em outros países, assinala “The Guardian”, essas mortes seriam pranteadas  com luto oficial e palavras a lamentar as perdas com  honras e pesar dos governantes em nome da nação.

Em entrevista ao “The Guardian” na mesma edição, Bia Fonseca Corrêa do Lago, filha de Rubem Fonseca, falou em nome do pai, e por extensão pelas famílias enlutadas. Resumo de suas palavras:

“ (...este) é um governo cujos ídolos são torturadores notórios. Felizmente,  essa gente nem sequer pronunciou o nome do meu pai. Quanto mais longe  essa gente no poder ficar de mim e de minha família, melhor. Escritores  representam a liberdade, enquanto torturadores representam tudo o que mais detestamos: crueldade, ditadura, covardia, pavor da  diversidade e da diferença. Para ser franca,  me incomodaria muito que qualquer membro deste governo decidisse   falar sobre meu pai. Essa gente é horrenda.”   Brava Bia Fonseca Corrêa do Lago.

O Globo, 11/06/2020