Quando o poeta Gerardo Mello Mourão regressou de Pequim, onde passou dois anos na condição de correspondente da Folha de S. Paulo, os amigos cobraram dele um livro sobre a China. Com a sabedoria de um mandarim cearense, ele respondeu que, se um jornalista brasileiro vai à China e passa uma semana, na volta escreve um livro. Quando a viagem dura um mês, o sujeito desconfia que há um mundo para ele desconhecido e então só escreve um artigo. Mas se a permanência for de dois anos, no regresso ele não escreve nada; em dois anos dá para perceber que para explicar o planeta China é indispensável viver lá pelo menos dez.
Cuba não é a China, mas se você passa uma semana em Havana, confinado à ilha da fantasia, aquela região dos hotéis e restaurantes onde o dólar circula, continuará a léguas de distância do cerne do problema cubano. Você pode andar pelas ruas, tomar mojitos no La Bodeguita, o bar que Hemingway freqüentava, visitar a casa de Alejo Carpentier, comover-se com a resistência dos cubanos e sentir a atração por uma cidade caribenha da qual nenhum brasileiro escapa. Mas daí a escrever sobre Cuba e seus problemas vai um abismo.
No entanto, se você assistir o filme Suíte Habana, documentário longa-metragem de Fernando Pérez sobre as 24 horas de diferentes habitantes da capital cubana, vai conhecer e ''entender'' um pouco, senão Cuba, pelo menos Havana. Trata-se de um filme às vezes alegre, outras doloroso, mas nunca cético; sempre otimista, sobre a condição humana submetida a um duro regime socialista e a um cruel bloqueio econômico.
Nos primeiros 20 minutos você vai sendo apresentado à vida diária dos personagens, cujas histórias serão contadas nos 70 minutos seguintes. No começo, a trilha sonora registra apenas os ruídos da cidade e os movimentos de cada um, sem narrativas ou entrevistas. A música (Sílvio Rodrigues, Pablo Milanez) só virá mais tarde, no desenrolar das histórias. Com habilidade e ternura, sem perder o fio da narrativa, Pérez passa a mostrar a vida real de cubanos de várias profissões e atividades. Assim compõe uma sinfonia de imagens e, sem palavras, conta o dia-a-dia de uma cidade cujos habitantes, apesar do bloqueio ianque, ainda levantam todos os dias com a esperança de que algo melhor aconteça em suas vidas.
No espaço de uma crônica é impossível escrever sobre um filme estudado e elogiadíssimo por críticos de vários países. Mas entre os personagens captados pela câmara, você ficará intrigado com os que se revezam, dia e noite, na vigilância de uma estátua em um parque da cidade. Cada um passa seis horas olhando-a como se estivesse num ato de adoração, numa prece contrita. Para quem visita Havana pela primeira vez é difícil identificar o homenageado. José Martí? O Che? Camilo Cienfuegos? Não. E muito menos Fidel. Trata-se da estátua de John Lennon.
Imagine! Sim, o beatle assassinado de forma brutal por um maníaco nos EUA recebeu uma homenagem do governo comunista de Cuba. A estátua de Lennon é tão realista que o escultor resolveu colocar os óculos do cantor com aros de metal e vidros no lugar das lentes. Mas os fãs dos Beatles de Havana se dedicaram ao esporte de roubar os óculos da estátua. A solução encontrada para evitar os roubos foi a vigília, diuturna, chova ou faça sol.
Se você for a Havana, pegue um táxi na porta do hotel e peça para ir ver a estátua de John Lennon e o seu guarda, que pode ser homem ou mulher, sempre imóvel, diante dela. O táxi o levará até o local, você desce e vai até o centro do parque para observar aquela cena impensável em qualquer país do mundo. Na volta, dê um dólar extra ao taxista, pois ele é funcionário do Estado, ganha pouco e precisa desse dólar para melhorar sua vida.
Assim como os vigilantes da estátua de Lennon, todos os que aparecem no filme de Pérez são cubanos capazes de resistir, apesar de tudo. Resistir - como demonstra o filme -, sem apelos demagógicos, dramas ou heroísmos, mas com a força haurida do mais humano que existe em cada um deles. Com a força dos que dão valor às pequenas coisas da vida. Um filme emocionante, comovente, imperdível.
É bom chamar a atenção dos brilhantes pauteiros da nossa preclara mídia para a existência de um diretor de cinema cubano com vasta obra, premiada em vários festivais e no Sundance, mas do qual não temos notícia, aqui no Brasil. Se eu estiver errado, me informem, por favor. Está na hora de um distribuidor ou exibidor inteligente ir buscar em Cuba o filme Suíte Habana. Não tenho dúvida de que alcançará sucesso, não só entre os fãs de John Lennon, mas em todo o circuito dito cult do País.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 18/02/2004