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Elogio do Inacabado

 

Leonardo Boff escreveu um livro denso com a leveza de uma prosa luminescente, minimalista e breve. Em Cristianismo: o mínimo do mínimo, Boff dá mais uma vez provas sobejas do alcance de seu fazer teológico, nos limites de uma cultura da paz e da emancipação. Some-se a isso, desde a metade dos anos oitenta, sua visão cósmica decisiva – poética e profética –, mediante a qual o núcleo duro da teologia da libertação foi adquirindo novos matizes.
 
A começar pela defesa radical e de sabor neoplatônico  do mistério do meio divino. Mistério denso, impermeável, absoluto, que ilumina o Paraíso de Dante ou a noite de João da Cruz. Mistério transbordante de potencialidades, que se voltam para a criação, das partículas elementares ao fenômeno humano. E o mistério não cessa, antes se abisma no nascimento e ressurreição de Cristo, como em Teilhard de Chardin. E se prolonga no mistério da iniquidade ao mistério do Reino e de sua ativa espera.

O mínimo do mínimo, para Boff, mora na célebre oração dos evangelhos, o de Mateus ou, mais propriamente, talvez, aquele de Lucas. É um dos pontos altos do que o teólogo define como parte essencial da cristandade. Mas o que realmente encanta no livro de Leonardo são as diversas interfaces, imagens e espelhos, através das quais as lacunas se interpenetram, formando uma torrente de realidades potenciais e inacabadas.

Uma espécie de teologia da falta ou da incompletude poderia definir o dinamismo filosófico de Boff quando afirma, por exemplo, que “O próprio Jesus não acabou de ressuscitar. Ele começou em si o processo de ressurreição, vale dizer, da concretização daquilo que Reino de Deus significa. Só seu núcleo pessoal ressuscitou”. E que “Jesus continua ressuscitado no mundo, embora ainda participando da vida dos crucificados, seus irmãos e irmãs, até que, na plenitude dos tempos, acabe de ressuscitar. Ele tem ainda futuro. A ressurreição está ainda em curso, ela se mostra nos bens do Reino e da ressurreição como no amor, na solidariedade, na dignidade, da defesa dos vulneráveis e no cuidado da casa comum, a Terra.”
 
Esse trecho traduz com riqueza o elogio das coisas latentes, desenha a projeção de um futuro, a par de uma demanda concreta de justiça e comunhão.  Ideias reiteradas de Boff que vem de seus livros anteriores, bem entendido, mas com avanços importantes em alguns campos da teologia, que seria demorado explicar aqui. Basta a defesa da incompletude para a promoção de um novo olhar.

O inacabado é o anjo da crítica teológica. Penso nas obras de Faustino Teixeira, relativas à mística comparada, de que destaco Os buscadores do diálogo, ou nas novas tendências da teologia das religiões, como as de John Hick e Jacques Dupuis.

O livro de Leonardo Boff não é um ensaio religioso hard, que exija a fé como pré-condição de leitura, como um aviso das repartições que diga aos sem religião ou crença “proibida a entrada de estranhos”.  Ao contrário, para um bom teólogo não há estrangeiros e nem tampouco uma só porta de entrada. Boff adverte que pensou o livro para aqueles que, com ou sem fé, sentem o fascínio da figura de Jesus.

Diga-se ainda que se trata de uma obra isenta de proselitismo, o que hoje constitui quase alívio e  milagre. Um livro sem a desbotada logomarca jesus!, com franquias bem sucedidas, produtos exclusivos e clientes fidelizados. Longe disso. Leonardo em toda a sua vida, bem como nesse livro, que um pouco a resume e sintetiza, não perdeu sua intimidade com Francisco, intimidade que  cresceu com o passar do tempo. E que tão radicalmente o distingue dos marqueteiros. A libertação da Terra e do homem implica apressar o ainda-não, a projeção utópica do futuro, onde se encontram as três religiões mosaicas – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. O mistério da diversidade. O mistério da beleza nas coisas diversas. 

Diversidade que concorra para a elaboração de uma cultura da paz, como insiste Boff, ao encerrar o terceiro livro das Virtudes para um outro mundo possível, quando considera essa nova cultura: “uma das fontes que mais podem garantir o futuro. Então a paz florescerá na Mãe Terra, na natureza, na imensa comunidade de vida, nas relações entre as culturas e povos e aquietará o coração humano.” De olhos abertos, eis o sonho do futuro, a matéria viva da esperança. Pensá-la  é tarefa maior da teologia   contemporânea. 
     
Para Leonardo, a vivência abissal do cristianismo precisar ser recuperada, entendida como construção, nitidamente aberta,  no compasso de uma espera ativa, cheia de janelas e possibilidades.

O Globo, 23/04/2012