Amigo meu, dos mais queridos, acusa-me de sempre falar nas Guerras Púnicas quando estou sem assunto e, pior do que isso, quando tenho um bom assunto pela frente. Dou o pescoço à forca: é verdade e, mais do que verdade, é uma necessidade de minha parte.
Daí não se conclui que sou entendido em Guerras Púnicas. Sei o básico, que todos aprendemos nas escolas de primeiro grau: houve três Guerras Púnicas, mas somente duas contam realmente para a história. Sendo duas, acredito que foram a primeira e a segunda. Nada ou pouco sei mais do que isso.
Pode parecer pouco, pouquíssimo, mas, em termos de conhecimentos gerais, já é alguma coisa. Posso estar falando de filosofia quântica, do peso dos astros, da taxa de câmbio na Austrália ou das cuecas de dom João 6º (se é que ele usava cuecas). Sempre dou um jeito de citar as Guerras Púnicas, as duas simultaneamente (não as três), para mostrar a extensão das minhas informações ou deformações culturais, escassas as primeiras, pródigas as segundas.
Nasceu em mim um certo cansaço, diria até um desânimo, quando me pedem entrevistas ou declarações sobre qualquer tema ou situação. São estudantes geralmente, ou colegas de ofício, que, mal informados, acreditam que eu tenha alguma luz a derramar sobre os rumos das democracias ocidentais, por exemplo, ou sobre o mistério das mulheres orientais. Evidente que pouco ou nada entendo de ambas as coisas, mas entendendo ou não, dou um jeito de começar a dar opinião citando as Guerras Púnicas.
Pasmo e, ao mesmo tempo, curiosidade. Vinte dos dez entrevistadores nunca ouviram falar em tais guerras e me acreditam louco ou arrogante. Vai lá: eles têm um pouco ou têm muita razão. Venho descobrindo que, para a maioria daqueles que estão no brinquedo cultural, o mundo começou a existir a partir de Elis Regina. Antes dela, era o caos, nem o espírito de Deus pairava sobre as águas, como diz o Gênesis.
Todo o passado do homem e da matéria teve início quando a extraordinária "Pimentinha" deixou de gravar um repertório cafona e começou a sua carreira de maior cantora da música popular brasileira. Foi o "fiat lux" inicial que dissipou as trevas e deu o pontapé inicial para começar a história universal.
Bem verdade que, de acordo com outras gentes e culturas, as hégiras costumam variar, basta dizer que há datas antes e depois de Cristo - uma forma de contar o tempo que muitos povos adotaram até o momento em que Elis Regina deu uma banana para tangos e boleros e começou a cantar o seu repertório genial.
Outro dia, um pesquisador quis saber se era mesmo verdade que, no passado mais remoto da humanidade, um escritor havia sido assassinado no bairro da Piedade, aqui no Rio. Ele só sabia de um escriba que nem assassinado fora, mas se suicidara, um tal de Pedro Neves.
Com a delicadeza possível, falei que não havia nenhum Pedro Neves que tivesse deixado obra notável, havia um Pedro Nava, que realmente se suicidara, mas houvera um outro que fora assassinado em Piedade, escrevera um livro sobe a Guerra de Canudos - e, antes que ele perguntasse que guerra era essa, fiz questão de esclarecer que não se tratava das Guerras Púnicas, nem da primeira nem da segunda nem da terceira.
Pergunta mais objetiva foi sobre a própria Elis Regina e a valsa "Fascinação", gravada por ela. Segundo o entrevistador, a intérprete era também autora da letra e da música. Lembrei que Carlos Galhardo lançara a mesma valsa com a mesma letra antes de Elis Regina nascer. Atônito, ouvi do outro lado da linha: "Como pode?".
Não podia, é claro. O mundo começara com ela, nada havia antes, tudo se amontoava sem lógica nem cronologia, os dinossauros, Pedro Álvares Cabral, a bomba atômica, Jesus Cristo e Che Guevara, tudo isso se amontoava na massa anônima e informe anterior à criação do universo e da Elis Regina.
Ficou difícil encaixar as Guerras Púnicas na questão levantada pelo entrevistador. Faltou-me arte e saco para arranjar um gancho que me abrisse espaço para a inserção que, mais do que nunca, me pareceu necessária e urgente.
Vim lá de trás, falei que antes de Elis Regina os sumérios já haviam inventado a roda, roda que tanto rodou e roda até hoje, nos carros de combate que serviram a Amílcar e Aníbal Barca nas Guerras Púnicas, até nas motos dos entregadores de pizza na fase DER, ou seja, "depois de Elis Regina".
Para complicar mais ainda, e apesar de ter errado sozinho, fiz um "erramos" logo após a informação. Não, nas Guerras Púnicas, pelo menos naquela em que Aníbal se destacou, ele atravessou o Alpes sem carros e sem rodas, mas em cima de elefantes. Pedi desculpa pelo erro. Fui desculpado.
Daí em diante, percebi que não estava agradando. O sujeito pediu que repetisse a história dos elefantes, ao tomar suas notas com as minhas respostas, trocou o Alpes pelo Andes mas não dei importância. Fiz apenas questão de deixar bem claro: "Olha, pode anotar aí: considero a Elis Regina a maior de todos os tempos. Ela também inventou a roda".
Folha de São Paulo (São Paulo) 20/1/2006