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Elegia à bala perdida

 

Nada tenho contra os motoristas de táxi, embora pouco recorra a eles. Mas outro dia, justamente quando houve a última guerra na Rocinha entre dois bandos rivais, dos dois bandos rivais contra a polícia e da polícia contra os dois bandos rivais, precisei ir da praça Quinze ao Leme. Tomei um táxi novinho, ar-refrigerado em bom funcionamento, a licença do motorista com foto respectiva atestando que ele se chamava Gervásio Antônio de Oliveira.


Disse que precisava ir ao Leme, pela praia. Percebi que Gervásio Antônio de Oliveira tremeu nas bases e, sobretudo, nas mãos. Meio sem jeito, ou sem jeito algum, pediu que eu tomasse outro táxi, não o levasse a mal, mas tinha pavor de ir para a Zona Sul. Perguntei por quê. A resposta veio tremida, do mais fundo de seu pânico urbano: "Por causa da bala perdida!".


Em sua boca, "bala perdida" parecia um duende maléfico, onipresente, que ficava rondando o espaço aéreo da cidade, esperando a oportunidade de Gervásio Antônio de Oliveira dar sopa e adentrar a Zona Sul. Fatalmente haveria uma bala perdida, perdida e inteligente, dessas que são programadas por computadores igualmente inteligentes, e tornar-se-ia um petardo letal que acabaria com os dias e as noites de Gervásio Antônio de Oliveira.


Desconfiei que ele, em seu pavor pela Zona Sul, não a conhecia suficientemente bem. Expliquei-lhe que o Leme fica no lado oposto ao da Rocinha -mais fácil uma bala perdida do Iraque ou da Faixa de Gaza pegá-lo desprevenido.


Gervásio Antônio não foi na conversa. Pediu desculpa, mil desculpas, mas só de pensar em tomar a direção fatal ele se borrava todo. Ficou pálido, lábio trêmulo, não daquela emoção que o Nelson Rodrigues atribuía aos seus personagens quando se emocionavam. Era medo mesmo, pavor.


Compreendi a situação. Desci, tomei outro táxi, sem ar-refrigerado. O motorista também era Oliveira, mas oliveira da paz. Nome completo: Paulo Simas de Oliveira.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 22/2/2006