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A educação e a esperança em conserva

 

Mais se torna complexa a conjuntura contemporânea, mais se clama por soluções peremptórias, no excesso da confiança de que todo o futuro depende de uma vontade desembainhada para mudar, no "vale-tudo" sem concessões. Não nos falta apetite para atacar os problemas do século, mas assumimos que a proposta aconteça, por si mesmo, se a tanto não faltar desassombro e garra de uma geração.


A educação é a emboscada mais propícia para que se enrosque o idealismo a só responder pela sua determinação nua e ética, e a utopia que já é um projeto de intervenção na realidade, que considera a concatenação do que queira fazer. Mas não entra no como realizá-lo, no por onde começar, no como tomar tento e paciência para que floresça a diferença no mundo dos homens.


Quando entramos em tempo de insatisfação global, é toda uma estrutura de vida que se ataca na retórica bem conhecida de focar-se o mal sumo a abater, e na fórmula para alcançá-lo avança-se a receita tão abrangente como sumária, entregue, como sempre, ao seu prodígio performático. Ainda sofremos a contrapartida mental do castigo do subdesenvolvimento, nessas atitudes sôfregas, onde impaciência em nos livrarmos do insuportável vem de par com a escolha do vilão a abater. Ou o fator eleito para espancar o reino das insatisfações de todo gênero e grau em nosso status quo.


Esta retórica da impaciência se refestela em nosso passado subcolonial, dos slogans e das alternativas pseudocontundentes, qual a do mote do fim ainda da nossa belle epoque agrária: "o Brasil acaba com a saúva ou a saúva com o Brasil". Vai, no mesmo veio, o vezo pelas prioridades sumárias e peremptórias para sairmos do charco de impasses da velha ordem. A educação tornou-se, por aí mesmo, o prato de resistência para os salvacionismos antológicos e a-críticos de nosso tempo e a preservação em conserva da nossa esperança. Nela o idealismo se aninha, acima de qualquer suspeita, e uma militância utópica pode reinar, por gerações. Arroga-se, vara na mão, o direito de responsabilizar o país pelo que não se faz e se safa pela cobrança de uma eterna repartida. Quantas reformas cumuladas de educação neste último meio século? Que governo, afinal, não se rende a este imaginário complacente, ao propor a "sua" reforma? É como se tivesse o condão determinante da autenticidade para a cobrança histórica. Faltará a este reclamo todo governo da hora, fugindo ao palco obrigatório para se credenciar ao respeito público.


Na verdade, e no tônus do processo de mudança o sonho convencional da educação é visto como "abre-te Sésamo" para todos os avanços. Foram outras, em nosso caso, as mudanças responsáveis pela alteração qualitativa e pelo salto dos 60, desde a desconcentração da renda, pelo salário mínimo de 41, até a mudança estrutural da atividade produtiva com o começo da industrialização e a função entre nós, fundadora, do Estado-empresário. A educação não foi mola das novas oportunidades abertas no espaço social brasileiro, como transpôs-se, de início, ao ganho da nossa mobilidade generalizada, os curtos-circuitos da velha dominação. Reconstituíram-se os códigos do velho establishment; na titulação do diploma universitário como criação de uma clericatura em que ainda sobrevive o resíduo das hierarquias do regime do pré-desenvolvimento.


Os progressos até hoje trazidos à alfabetização, aos ensinos de primeiro e segundo graus, ou universitário, beneficiaram-se de uma mobilidade social desemperrada por outra alavanca. Não pode a educação ser vista entre nós, como mãe de todas as mudanças, tal como aconteceu, por exemplo, na Turquia ou na Coréia do Sul, em duas etapas da modernização, características do século XX. A escolarização básica é pré-requisito, mas não é condição efetiva de entrada no mercado; só 1/3 hoje de uma nova geração capacitada busca a universidade; a produção tecnológica não se insere naturalmente no campus; a inteligência crítica nunca se localizou no âmbito das atividades da "pós-graduação", onde se remata mais o culto do saber convencional; a inovação não sai dominantemente do campus; as empresas em linha de ponta se transformam no reduto, quase clausurado, da produção tecnológica, repartida com o capital produtivo público que se mantém na infra-estrutura brasileira, da Petrobras, à Embraer, à Embrapa.


São todas perplexidades, senão contradições, que reclamam cautela ao urro cívico pela educação e seu "abre-alas" indiscriminado para a conquista do novo país. O mundo do trabalho não muda ainda, quando absorve uma nova capacitação profissional. Acolhe-a no limite da sua inércia. O sucesso dos ditos cursos seqüenciais é a prova do processo da universidade "establishmentária", trazida a reboque da verdadeira construção da mudança.


O PT entra agora no tempo social para instaurar o seu projeto de desenvolvimento. A educação aí só se enuncia em política pública concretíssima, seja em "ação afirmativa", como na imposição nas cotas de acesso ao ensino, seja no cobrar avaliações de genuínas performances, por sobre as ratificações das titularidades tradicionais do ensino do terceiro grau. Declinado, em tese, bombástico e tonitruante, o clamor pela educação identifica um imperativo de antes de seu papel realmente transformador na vida social. Passamos a fase do seu clamor altissonante. Repeti-la nestes termos, nos manteria tão-só na anestesia da boa consciência, tão idealista quanto à frete do verdadeiro "que fazer" nacional.


 Jornal do Commercio (RJ) 24/9/2004