Em sentido figurado, ela passou à história como cidade maldita, antro de fornicações
ATÉ QUE chegou o dia da mudança -uma batalha que avançou milímetro a milímetro, segundo a segundo, os carregadores que botavam mãos suadas em cima dos estofados, a geladeira que enguiçou na porta e ficou sem sair nem entrar, o parafuso que armava a cama -velha e honesta cama de seus primeiros anos de casado e que agora seria rebaixada para o quarto dos objetos inúteis. Pois o parafuso quebrou dentro da madeira, e a cama teve de ser retirada pela janela, armada como um esquife, espantando a todos os vizinhos e desocupados que se fincaram o dia todo para acompanhar as operações. Ele viu a cama descendo, amarrada como um ovo de páscoa, os homens da mudança comandando aos berros, os trancos, as cautelas, sentiu-se profanado. A mulher, a seu lado, também sentiu coisa igual.
- Olha a nossa cama! Nós não devíamos fazer isso com ela!
- Fazer o quê? Queria que nós a jogássemos janela abaixo?
- Não. Nós podíamos ter ficado com ela. Olha que fomos felizes.
- Deixa disso! Vamos botar de lado as superstições. Além do mais, ela continuará conosco. Quando pudermos, vamos ter a nossa casa em Teresópolis ou em Miguel Pereira, ela vai servir outra vez.
- "Felizmente não tinham piano" -foi a hipótese que a vizinhança levantou em clamor unânime. Explicaram que com piano a coisa era mais complicada ainda, e ele ouviu pacientemente os cuidados e as cautelas que costumam acompanhar a operação de mudar um piano de uma casa para outra.
Não tinham piano, mas tinham a geladeira, que, ao cair da tarde, ainda estava empacada na porta. Os homens já tinham feito duas viagens até o Leblon e voltavam para apanhar as miudezas, os vasos de plantas da mulher, alguns quadros, e a geladeira lá estava, inarredável, silenciosa, parecia ter inchado, maior do que era realmente. Foi preciso um conselho geral em que entraram a sabedoria e os palpites de todos. Até que alguém apelou para a ignorância, a força bruta, e a geladeira afinal passou, deixando um rastro de arranhões e mutilações.
Mas a geladeira também se ressentira e agora não abria a porta, era preciso chamar um técnico, talvez o motor estivesse danificado, uma canseira a mais.
Só na última viagem, quando, juntamente com a geladeira aos pedaços, cruzou o hall de entrada do novo prédio, foi que, sem querer, olhou para cima da porta principal e leu, em letras douradas, destacadas: "Edifício Babilônia".
"Diabo. Podia ter outro nome!"
Não precisava espalhar aos ventos que morava no edifício Babilônia. Para todo mundo, para a correspondência postal, parentes, amigos e fornecedores, dava o número do prédio e do apartamento, bastava, não precisava acrescentar o nome que lhe soava como um agouro de pecado e confusão. Nem mesmo a mulher, atarefada nas arrumações, teve tempo de reparar naquilo. Só muito tempo depois, quando receberam uma cota do condomínio, foi que ela viu impresso aquele nome.
- Ué? O nome do prédio é Babilônia?
Ele fingiu que também não sabia e pediu o papel para verificar. Examinou com atenção os impressos, confirmou:
- É.
- Que nome mais esquisito! Por que Babilônia?
- Ora, não tem importância, já moramos num edifício Ceará, por que Ceará? Por que Piauí? Por que qualquer nome?
- Mas Babilônia? Que história mesmo é essa de Babilônia?
Ele deu de ombros:
- É o nome de uma cidade antiga. Deixa isso para lá.
À noite daquele dia, para precaver-se, foi ao dicionário que também herdara do pai, um velho "Aurélio Buarque de Holanda", já ensebado pelo paterno manuseio. Encontrou a palavra em minúscula: "Babilônia, singular, feminino, confusão".
Tinha amigos cultos, até mesmo um escritor que fora seminarista. Consultou-o pelo telefone:
- Me diz que história é essa de Babilônia.
- Babilônia? Por que você quer saber?
- É que eu tive uma discussão com um camarada, e ele teimou que Babilônia era sinônimo de depravação. Você acha que é?
- Em sentido figurado, é. Juntamente com Sodoma e Gomorra, Babilônia passou à história como cidade maldita, antro de fornicações.
Ele tremeu.
- Fornicações?
- É. Fornicações. Fornicava-se muito em Babilônia.
E ele tremeu, mais uma vez.
Folha de São Paulo (São Paulo) 30/06/2006