Nunca havia pensado naquilo. Já trabalhava em jornal, sabia algumas coisas e julgava saber outras. Dico, grande amigo meu, mamando um "Ouro de Cuba" (entre outras coisas, ele me ensinou a fumar charutos), me fez uma pergunta que eu não soube responder: "Você já imaginou se no céu soasse um gongo gigantesco e, a partir daquele momento, pelo espaço de apenas dez minutos, só se pudesse dizer a verdade? Como seria o mundo, como seríamos nós mesmos após os dez minutos da verdade?".
Confesso que fiquei gelado. Nunca imaginara a hipótese, a verdade obrigatória, fosse qual fosse, não a verdade dos reis e dos papas, dos grandes do mundo e das artes, mas a verdade do homem comum, do marido e da mulher, dos colegas de repartição ou de aula, de todos, enfim. É evidente que durante os dez minutos tudo seria fácil e, como querem os politicamente corretos, tudo seria transparente, ético. O problema seria o depois, a volta não à mentira, mas à normalidade.
Dico era leitor fanático de Shakespeare. A idéia do gongo da verdade deve ter nascido de algum trecho que ele leu ou deduziu do seu mestre. De alguma forma, eu já fora informado de que a sociedade humana tinha como ponto de gravidade a mentira, a convenção, em torno da qual se erguiam todos os demais valores. E tinha de ser assim mesmo, do contrário, haveria uma hecatombe geral ou um suicídio coletivo -uma hipótese com a qual sempre brinquei, considerando-a profilática.
Antes que me perca em divagações mais extravagantes, voltemos à necessidade da mentira. Seu papel civilizador, sua urgência moral, sua inevitabilidade social. Ela é que nos mantém vivos, conseguindo até a proeza de nos dar momentos felizes ou suportáveis. Erasmo elogiou a loucura. Estou eu aqui a elogiar a mentira, que, aliás, não precisa de elogio, tão necessária é para que tudo funcione, desde o governo até a oposição, as CPIs e o resto.
Folha de São Paulo (São Paulo) 20/10/2005