Conta-se que, numa grande mesa em restaurante de um dos principais hotéis de Moscou, à qual se sentavam singulares personalidades da inteligência brasileira e russa, suas cabeceiras estavam ocupadas pelo romancista Ilya Ehrenburg e pela pintora Djanira. Ehrenburg, famoso em todo o mundo por sua notável obra literária, mas também famoso entre seus amigos pela extraordinária capacidade de consumir vodka, aproveitava a ocasião para brindes sucessivos. E, cavalheirescamente, a cada brinde, fazia o percurso entre sua cadeira e a de Djanira, para que os copos se tocassem. No instante, entretanto, em que o romancista voltava a seu lugar, após renovar-lhe generosamente a dose, Djanira passava o cálice cheio a um companheiro de mesa e mantinha à sua frente o primeiro, quase vazio. Transcorridos vários brindes, o escritor rendeu-se, publicamente, à artista brasileira, superior a ele, ao que pensava, na simpatia pela vodka.
Assim era como pessoa Djanira da Mota e Silva: esperta, bem humorada, afável, em disponibilidade permanente para a alegria, embora a “indesejada das gentes” vivesse à sua espreita desde a juventude, quando a tuberculose levou-a a um sanatório. E foi precisamente no interior e sob o clima desse sanatório que a então jovem e chapeleira revelou, de súbito, sua mais autêntica vocação.
Fiel, por mais de quarenta anos, ao bairro carioca que elegeu como seu chão – Santa Tereza -, as viagens, entretanto, eram fundamentais para Djanira. Via e entendia. Entendendo, fez memória porque privilegiou imagens. Por isso, ela percorreu o Brasil em todos os sentidos, anotando em seus esboços a nossa multiface: conviveu com os índios Canela, no interior do Maranhão; desceu ao interior das minas de Itabira; foi ao Amazonas; visitou o litoral catarinense, tudo registrando, para um eventual aprofundamento posterior em seu ateliê, onde os estudos sugeriam telas.
Sem que houvesse, de sua parte, um comprometimento com uma arte social, poucos artistas diferentes de Djanira, entretanto, fizeram tão amplo painel do Brasil.
No dia 31 de maio de 1979, a morte – que a perseguia desde mocinha – enfim, a levou. Vestindo o hábito de irmã leiga da Ordem das Carmelitas, Djanira foi sepultada, no Jardim da Saudade, no Rio de Janeiro. Mas, através de sua vasta obra, ela ficou.
Para dar mais um testemunho da sua presença, o Museu Nacional de Belas Artes editou livro, a um só tempo de oferta e de aceitação. Oferta, na medida em que representa mais um elemento de exaltação do que nos legou; aceitação, enquanto demonstra válida a observação de que ainda muito temos de estudar a grande Djanira, cujo centenário estamos a comemorar.