Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > A distopia que vivemos

A distopia que vivemos

 

Tudo leva a crer que o ex-presidente Bolsonaro sabia da possibilidade de a rede social X, banida do território nacional pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, voltar a funcionar em algum momento ontem. Tanto que tinha pronto um texto longo sobre o tema, com críticas à decisão e uma defesa das empresas de Elon Musk. O escrito tinha características de ter sido oriundo de sua defesa jurídica, não de mensagem escrita em português peculiar pelo vereador Carlos Bolsonaro, que manipula as redes sociais para seu pai.

Foi uma clara provocação do bilionário Musk, que assumiu definitivamente o papel de militante da direita internacional. A compra do Twitter, rebatizado X, não foi um investimento financeiro, mas um lance para aumentar o potencial da atividade política de Musk. Sendo assim, o combate ao ativista internacional torna-se também um combate político, embora a base da punição no Brasil tenha sido técnica, pela falta de pagamento de multas e de representante legal no país.

O Supremo precisa evitar que a ação de seus ministros seja vista como política, pois vários países se veem às voltas com as empresas donas de redes sociais que ganharam uma força social que as transformam em Estados paralelos. Não apenas Musk, embora principalmente ele, mas todos os donos das big techs cada vez se sentem mais onipotentes e onipresentes, e esse poder lhes dá a sensação de invencibilidade.

Parece incrível que estejamos vivendo uma realidade distópica que poderia ganhar o prêmio de melhor roteiro em festivais de filmes internacionais. A tecnologia digital permite não apenas que poucos poderosos enfrentem as leis de países, como assassinatos à distância, como acontece agora na luta de Israel contra o Hezbollah no Líbano. A manobra tecnológica criada pelos técnicos do X para burlar a proibição brasileira é uma ação guerrilheira como outra qualquer, só que no mundo digital, assim como o terrorismo digital dos pagers e walkie-talkies é fruto da nova guerra à distância, liderada por drones assassinos, sem que “guerreiros” estejam no campo de batalha.

Musk parece um daqueles vilões dos filmes de 007, ou, mais atualmente, das séries de ação de Tom Cruise, que se preparam para dominar o mundo com armas tecnológicas avançadíssimas, mas que sucumbem aos heróis que protegem o mundo. Existem pessoas analógicas, que não se adaptaram às modernidades tecnológicas ou digitais. As leis brasileiras são analógicas e precisam ser readequadas aos tempos de guerras digitais, metafóricas ou reais. O perigo do ativismo digital de Musk é que ele se considera, e muitas vezes é, mais poderoso do que países.

Seu atrevimento cresce à medida que países são menos desenvolvidos que outros, como na Europa, onde ele sabe que a ação governamental pode ser mais efetiva. Mais uma vez a realidade se mostra mais perigosa do que se previa, e o ministro Alexandre de Moraes surge como justiceiro necessário, mesmo que ultrapasse limites legais de uma legislação analógica. Também essa é parte da distopia que vivemos, em que se torna necessária a proteção da soberania nacional, embora a tecnologia não tenha fronteiras, a tal ponto que um vilão digital se sente em condições de enfrentar um Estado-Nação.

Quando alguns dos bilionários do mundo têm mais dinheiro que países, e esse dinheiro está concentrado em grandes empresários digitais como Musk, do X, Jeff Bezos, da Amazon, Mark Zuckerberg, da Meta, e Larry Ellison, da Oracle, o poder deles é imensurável se as nações não se unirem para impor-lhes limites de convivência civilizada nesta nova era. Basta que um desses bilionários tenha um desvio de caráter ou sonhos megalomaníacos de poder para estarmos em perigo.

O Globo, 19/09/2024