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Dissonância cognitiva

 

A decisão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado de endurecer o combate às drogas — na direção oposta do que é analisado no Supremo Tribunal Federal (STF) e em dissonância completa como o mundo ocidental civilizado trata dessa questão fundamental da contemporaneidade —é o embate entre o retrocesso da visão anacrônica que prevalece entre os parlamentares e a ambição de “empurrar a História” da maioria progressista do Supremo.

Progressistas esses que já deram cinco votos nesse caso específico, o que não significa que sejam “progressistas” noutras questões. Muitos são “garantistas” quando lhes convém, como no combate à corrupção, que vem sendo destruído por interesses retrógrados que unem alguns dos “progressistas” do Supremo aos anacrônicos do Congresso.

O embate entre Congresso e STF na questão do porte de drogas é inevitável, uma disputa de condições ideológicas distintas. O Congresso é conservador, não acompanha a posição progressista que tem maioria no STF nesse e noutros casos envolvendo valores morais e comportamentais.

A interferência do Supremo em questões que deveriam ser da alçada dos parlamentares, como essa da descriminalização das drogas, acontece geralmente porque nossos representantes recusam-se a assumir decisões delicadas, que podem lhes tirar votos. Desta vez, como a maioria do eleitorado parece estar ao lado do combate às drogas, sem se importar com consequências, os senadores, depois os deputados, resolveram legislar, e deu-se a colisão de interesses com o Supremo, que também trata da mesma questão.

O STF não deveria participar dessa decisão, a não ser que, aprovada a PEC, alguma instituição entre com recurso, alegando ser inconstitucional. E a visão progressista do STF terá de fazer uma revisão técnica, para ver se realmente fere a Constituição. Discordo pessoalmente da decisão do Congresso, fico com a tendência do STF, de apoiar a descriminalização do uso da maconha. Considero anacrônica a visão de guerra às drogas, já desmoralizada pela realidade no mundo inteiro.

Cresce a cada momento o número de países que permitem o uso recreativo da maconha, retirando a pressão social dessa guerra que só faz reforçar o poder das facções criminosas. Voltamos a uma situação de país relegado a um plano secundário, ouvimos falar do cheiro que domina as ruas de Nova York depois que o uso da maconha foi liberado como se vivêssemos noutro planeta.

Mas, se o Congresso é conservador e decide dessa maneira, temos de aceitar. Que mude o Congresso quem achar que está errado. O STF só deveria entrar em temas como esse quando o Congresso evita decidir, mas agora ele está decidindo. Verdade que o STF pode interpretar de qualquer maneira — como disse Rui Barbosa, ele tem o direito de errar por último e pode errar para salvar uma decisão com que os ministros não concordam.

Aí entramos no embate sobre a participação política e técnica do STF, que está muito misturada. Não é função do STF ser revisor do Congresso. Aliás, são comportamentos como esse que fazem com que parte dos cidadãos se sinta constrangida pela pressão dos “progressistas”, tanto no Supremo quanto nas redes sociais e na opinião pública. E amparada pelo círculo de pertencimento a instituições conservadoras, religiosas ou não, que lhes dão guarida e apoio psicológico.

Uma sociedade tão desequilibrada quanto a nossa teria de ter naturalmente essa dissonância cognitiva entre seus desiguais. Políticos à cata de votos aproveitam-se da situação para tentar emparedar o Supremo, em mais um capítulo desse embate entre Poderes. Somente uma ação política de boa-fé, que leve em conta essa separação, poderá superá-la.

O Globo, 14/03/2024