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Direitos humanos e regime de castas

 

Vamos aos 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos, feita à saída do último conflito mundial. Lugar, talvez, agora onde mais se imponha, esta comemoração, como um clamor de consciência e uma chamada à responsabilidade de nosso tempo não é outro senão a Índia. Ostensivamente democrata sobrevive com o mais inabalável regime de castas e de discriminação social em nosso tempo. E num conformismo que tendemos a esquecer, tanto o país se mantém em 80% de sua população vinculada ao hinduísmo.


Curiosamente, também, é o país em que hoje mais se expande o catolicismo ainda que, nas massas gigantescas de população, estes índices não reverberem em mais de 3,8% da população. Os choques de religião ocorridos nesta semana reverberam um novo e inquietante integrismo hindu, e na sua inconciliabilidade com a modernização, no horizonte em que os direitos humanos são o remate obrigatório de um Estado de Direito neste raiar do século XXI.


Seria inevitável, à primeira vista, que o avanço do catolicismo se desse entre os párias ou as últimas classes a superar uma clausura histórica multimilenar incrustado pelo bramanismo. A luta contra o catolicismo, hoje, em sucessivas províncias hindus poderia ser lida como mais uma marca das guerras de fés em que se debate hoje a conquista de um verdadeiro pluralismo identitário de nosso tempo, superados, ao mesmo tempo, a tirania civilizatória ocidental e o retorno ao torvo gueto dos fundamentalismos.


Um líder católico foi queimado vivo, e fugiram sacerdotes e freiras, nas áreas em que prosperaram as missões, nas regiões mais pobres do país, como o Estado de Orissa, nas suas escalas de destituição cultural, para além da exclusão social e econômica, como a reconhecemos no mundo contemporâneo. O lance parece arrancar, entretanto, muito mais de um novo fundamentalismo que, de fato, do entendimento da fé cristã como a religião do pobre e do destituído, a reencontrar uma progressiva - senão avassaladora - consciência de direitos e da recuperação multimilenar de um descarte coletivo.


Infelizmente é o exotismo cristão que prevalece, por sobre o seu recado universal nos atuais incidentes das regiões mais pobres do subcontinente hindu. Convertidos, os católicos reproduzem, no seu meio, o mesmo estigma da casta, e se discriminam, desde os bramins até os dalites ou párias, replicados na prática cristã e, nela, sobretudo, do catolicismo que comanda 70% dos 2,3% da população hindu obediente ao Vaticano e seu anúncio contemporâneo.


Assoberbado com a violência moderníssima de um terrorismo universal, os 60 anos da Declaração de São Francisco tendem a passar ao largo este clamor de uma acomodação multissecular ao atentado mais elementar aos direitos da pessoa, entranhada no bramanismo. É de se esperar que possa vir do Vaticano, iniciativa mais contundente, vinculando, de pronto, o sucesso do missionarismo cristão na Índia com o efetivo abate multissecular do regime de castas.


A retomada do ecumenismo por Bento XVI demora, após as provações ligadas ao mundo muçulmano e ao lance histórico do Papa, na oração comum na Mesquita Azul em Istambul. Mas fica na agenda do atual pontífice a interrogação quanto ao passo adiante deste mesmo ecumenismo, deixado nas agendas irrealizadas de seu antecessor, nas visitas a Moscou e a Pequim. A civilização do medo leva à guerra de religiões e entorpece um profetismo de todas as cautelas, a bem de uma cultura da paz preventiva mais que, de fato, do encontro das civilizações. E o catolicismo depois de tentado à dominação ocidental nos períodos do colonialismo e neocolonialismo não pode se conformar ao bunker do neofundamentalismo americano, do criacionismo da governadora do Alasca, vice-presidente na chapa McCain, e pelo cristianismo redutor, justificar as guerras preventivas no Oriente Médio.


Histórica e geograficamente a Europa oriental é, também, muçulmana e o verdadeiro e novo ecumenismo de uma Igreja profética não poderá escapar ao anúncio da democracia, de par com dos direitos humanos, urbi et orbe, como esta defesa do "mais ser do homem todo e de todos os homens". A chamada do Vaticano II aí está, inconciliável com um catolicismo de castas, no segundo país mais populoso do mundo.


Jornal do Commercio (RJ) 12/09/2008

Jornal do Commercio (RJ), 12/09/2008