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Dinheiro de Cuba e ouro de Moscou

 

O avanço desses meses só mostrou a recorrência dos reflexos obsoletos de abate do presidente nos jogos de instabilidade que se permita ainda um status quo. Recuaram, a seguir, no apelo ao impeachment, mantido como não tão obscuro objeto do desejo permanente e de uma oposição, a experimentar, pela primeira vez, o alijamento do poder. Todo novo apelo a um dito dossiê "arrasador", como o do dinheiro cubano, volta à tona da primeira investida, borzeguins ao leito, da fantasia e da provocação. A meta, sim, é a do corte de toda proposta de reeleição e a troca por um fim de mandato descolorido e inerte de uma Presidência refém de que não se peça agora o seu impedimento.


O alongado dos inquéritos forçou a impaciência dos Relatores das CPIs que, como o fez o Deputado Serraglio, antecipou-se a anunciar o começo da descoberta do fio da meada, nos desvios de dinheiro público. Mas as informações sobre os recursos do Banco do Brasil na Visanet só entremostraram, de saída, a longevidade do esquema Marcos Valério, já que desde o governo Fernando Henrique estas fontes de suprimento acorriam à movimentação do seu vasto negócio publicitário no empenho de financiar os "caixas dois" da política brasileira. Não está em causa uma novidade, nem um precedente escandaloso do atual Planalto, mas o aperfeiçoamento crescente do valerioduto numa rotina de apropriação de recursos do Estado para a paga de condutas públicas. Só cresceu a rede de operações complexas entre contas prometidas, alocação antecipada de dispêndios públicos, reempréstimos bancários e adianto de pagamentos. O governo, réu da prática abusiva - no nível em que continuou rotina - o é dentro de abuso tolerado e enraizado - e as CPIs não se sairão do impasse sem o processo generalizado dos comportamentos denunciados. E do confronto entre a punição indiscriminada ou o "deixa-para-lá", ou a isenção do "caixa dois dos bons".


Deparamos, também, com a acusação do "dinheiro de Cuba", entregue ao PT, a disputa da manchete diante da opinião pública já viciada, na excitação em que a pseudocrise tenta uma sobrevida. Precisa da invocação do velho fantasma do "ouro de Moscou" para excitar a concupiscência com as notas de Fidel, no lugar das caixas de rum caribenho. Ou provoca mais seriamente um atrito entre os poderes por conta do primeiro desabrido do denuncismo. A própria oposição responsável baixou os seus fogos na primeira avaliação da subsistência do alarde dos recursos de Fidel à campanha de Lula. Não prosperou a retomada dos caminhos do impeachment, não obstante a sua tentação inicial fosse o revide retórico ao comprometimento dos governos anteriores com o valerioduto, de jorro, afinal indiscriminado, e democrático.


A sensação na passagem do clímax da crise se reforçou pelo tom geral em que se assentou a entrevista do presidente ao "Roda Viva". Verificou-se a segurança do comando dos dados da estabilidade econômico-financeira do país, de logo refletida na baixa inédita do dólar, e na redução de novo da avaliação do risco brasileiro nas bolsas de investimento. O que mais ressaltou da longa fala foi a reiteração da meta do governo: quer alcançar o Brasil de fundo. Entende Lula que os desmunidos, de fato, se transformem em atores de nosso futuro.


Perdendo ou não o governo, as classes e grupos que se associaram tardiamente à vitória, é aquele núcleo que se transforma em matriz da estabilidade da vida política do país. Não se transfere nem se dissolve. Não irá a partidos sucessores, mas pode, sim, dissociar-se do processo social brasileiro. A condução de um projeto é impensável fora deste leito de expectativas que, pelo PT, fez-se decisão nacional. Não existe, no Brasil dos desmunidos, um marco de desejos que repita os famosos "efeitos de demonstração", típicos da sociedade que ambiciona sempre o carro do vizinho, na plena mobilidade de uma economia amadurecida. Sua demanda é mínima, em contraste com a das classes médias tangidas pela sua volubilidade, ou mesmo pelos setores proletários que já atingiram o nível continuado do mercado, sua demanda salarial, seu avanço de benefícios. Lula, e só ele, continua o fiador dessa expectativa de fundo. E ela até agora não se contaminou pelo que é, exatamente, pseudocrise, transformada em crise, nos contornos mediáticos que assumiu.


Mas a exacerbação da grita também cansa. E a fala exaustiva, exposta à interlocução de todos os quadrantes evidenciou o efetivo passo adiante que moveu a "virada de página". Mais que ao revide das estocadas previstas ganhou o país a mirada do longo prazo, do Brasil que não cobra os desmandos do "mensalão" para, sim, esperar a superação da impunidade, e da mais obscura concentração de renda do mundo - salvo Serra Leoa, claro.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 11/11/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 11/11/2005