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A dimensão de Proust

 

Há 91 anos eram postos nas livrarias de Paris os primeiros exemplares de "Du côte de Chez Swann", primeira parte de "A la recherche du temps perdu". Exatamente em 14 de novembro de 1913, Proust via realizado seu sonho, embora houvesse tido de financiar a edição do livro que fora recusado pelo "Figaro" em 1910 e por Fasquelle, pela "Nouvelle revue française" e pelo editor Ollendoff em 1912 e começos de 13. Afinal, Bernard Grasmet aceitou publicá-lo, o autor pagando.


Em primeiro lugar, seus antecedentes. Pode-se dizer que o ambiente registrado no "A la recherche" saiu do mesmo ambiente que provocara "A rebours de Huysmanns" em 1884. O realismo chegara a um exagero e Huysmanns classificava os jovens de seu tempo como a geração anti-Zola. Em toda a Europa, mas principalmente na França e na Inglaterra, surgia o espírito do art-nouveau, o prazer do que se poderia chamar de decadência (embora, num cômputo mais alto, não o fosse) um misticismo geral e uma consciência de que tudo mudava.


Já com Dante Gabriel Rosseti e os pré-rafaelitas da Inglaterra essas mudanças se mostravam fortes, e eu colocaria em Walter Pater, e nos seus livros "The Renaissance" e "Marius the epicurean", dois antecedentes do esteticismo de Proust, embora neste a obra de arte viesse a assumir papel mais importante e a se identificar com a base do sentimento religioso no homem.


Walter Pater iria influir também na geração de Oscar Wilde, outro homem com o gosto da vida social. A influência mais próxima e, claro, manifesta, foi a de Ruskin, o autor de "Lilies and Sesame", cujo esteticismo, de caráter protestante mas catolicizante, podia ser absorvido talvez com mais força do que o de Pater por um católico-judeu como Proust.


Todo romancista recebe, naturalmente, influências de gente, e aí o mais decisivo na vida de Proust e na sua carreira do escritor foi o Conde Robert de Montesquiou-Fezensac. Muito se escreverá ainda sobre Montesquiou que, além de influenciar Proust, foi o modelo do mais avançado personagem de ficção da época: o Des Esseintes de "A rebours".


Nessa linhagem de Rossetti, Pater, Ruskin, Huysmanns, Montesquiou, estava a culminação do século XIX e o nascimento do XX. No meio de tudo, Proust não passava, para a grande maioria, de um dandy, de uma figura social sem importância, um amador que freqüentava os salões sociais do período, bem recebido em alguns, talvez apenas tolerado em certas casas, e de quem não se poderia esperar grande coisa.


Parte das dificuldades para lançar seu livro se deveu a essa idéia preconcebida. Para outros, Proust era protegido em demasia, protegido por Anatole France, por Montesquiou, pela situação financeira estável da família Proust, pelas donas dos salões literários da moda em Paris - e ninguém via - ou muito poucos o faziam - que a proteção, por exemplo, de Anatole era mais prejudicial do que qualquer outra coisa.


Veja-se o prefácio quase tolerante escrito para "Les plaisirs et les jours", livro de estréia de Proust. A própria reação de Gide ao recusar "Swann" na "Nouvelle révue française" vinha desse preconceito. Era como se um cronista social de nosso tempo - que tivesse sido apenas cronista social a vida toda e que, por causa disso mesmo, fosse atacado como arrivista e menosprezado intelectualmente - aparecesse de repente com uma obra do tipo de "Swann".


Os que vivem de rótulos não o aceitariam. E atente-se para o fato de que às vezes, quanto mais prestigiado no campo intelectual, mais preconcebido costuma ser um homem, que pode inclusive ter medo de concorrências inesperadas. Aí, é bom eliminar logo esses concorrentes.


Naquele começo de século, tudo já estava mais ou menos distribuído: valor, fama, prestígio - quem era esse Proust que vinha agora perturbar a paz dos escolhidos?


Vinda do século XIX, "A la recherche" surge como a primeira obra real e inteira da literatura do século XX. O telefone, o automóvel, o avião e outros componentes tecnológicos do meio-século das guerras mundiais, são parte do mundo de Proust, e a sociedade que se transforma, o tipo de vida urbana, quase metropolitana, que rompia com o tipo de vida do século XIX, tudo se mistura nas imagens que Proust recupera, reconstrói e solta no seu livro, aparentemente sem ordem e sem método, mas, na realidade, subordinadas a um duro método, um Método com M maiúsculo, num detalhismo de construção que almejava o monumental - que almejava e que chegou lá. Explicando-nos, dizendo como somos, abrindo claros no entendimento das paixões humanas, Proust preparou o modo de vida das gerações que a ele se sucederam.


Antecipando-nos, ele nos explicou a todos nós que vivemos em outro século. Entendendo-se, explicando-se a si mesmo - e a seus companheiros de tempo, de cidade e de ambiente social - ele como que nos justificou. Porque a verdade é que o homem não foi mais o mesmo depois de haver sido recriado por Marcel Proust que, ao fazê-lo, soprou nele - e em cada um de nós - uma vida nova e um novo entendimento.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 12/07/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 12/07/2005