Godard estará sempre em nossa história e em nossos filmes
Conheci Jean-Luc Godard em Paris, quando o Cinema Novo começou a ser conhecido por lá e eu estava me escondendo da ditadura militar com Nara Leão, então minha esposa. Sem chamar a atenção de ninguém, ele me perguntava sempre que revolução desejávamos fazer com o cinema no Brasil. Bem informado, Godard sabia do que se passava no Brasil, tinha certeza de que o cinema não era a única coisa de que o país estava necessitado. E lembrava a população brasileira morta de fome.
Num fim de noite em que ele, depois de algum vinho, começou a falar de seu desinteresse pela França e por sua classe dominante, por causa de razões parecidas com aquelas, afirmou que, enquanto seu país fosse uma nação que só pensava no bem-estar de seus maiorais, não lhe interessava discuti-lo, no cinema ou fora dele. O que surpreendeu os presentes, que sabiam que este era um dos temas preferidos de todos os seus filmes.
Para isso fazia os filmes que fazia e dava as entrevistas que dava a cada lançamento, escrevia os artigos que apareciam na imprensa parisiense, incomodando todo mundo. Não sei se algum de nós, numa mesa de bar ou não, lembrou-se de lhe dizer algo parecido com o que às vezes dizia para incomodar o interlocutor: para esses, seu discurso parecia muito mais outro escândalo provocado pelo mestre, do que uma novidade a ser estudada. Mesmo porque, naquele momento, os herdeiros da Nouvelle Vague não precisavam mais partir em busca desesperada de produtores dispostos a financiar as aventuras de sua revolução. Isso é o que não faltava a nenhum deles, sobretudo ao “chefe de fila”.
Godard morreu no ano passado, matou-se através de método moderno e muito em voga. Eu ia falar sobre ele, naquela ocasião, mas apareceu um outro assunto. Não sei direito por que, calei-me.
Godard morreu “programado”. Ele estava de saco cheio da vida, vivendo numa cidade suíça sem conhecido por perto e sem ter o que ver ou fazer nas redondezas. Mas foi isso o que ele buscou ao longo de sua vida.
Quando o encontrei pela primeira vez, seu discurso sobre o Brasil estava tão distante da realidade que não sei se valia a pena confrontá-lo com a verdade. Eu tinha vontade de lhe dizer o que dizia a meus amigos europeus, explicando-lhes a distância entre o que acontecia e suas teorias revolucionárias, entre o que eram aqueles duelos cívicos e seus resultados sempre a favor dos que eram ligados ao poder. Os que tinham as armas.
Preferia discutir com ele para onde estava indo o cinema que ele reinventava. Godard precisava saber que essa, sim, era a sua revolução possível.
Alguém precisava explicar isso aos intelectuais franceses: não era a luta armada que fazia a democratização do Brasil. Por melhor que fossem suas intenções, quem fez a democracia moderna do Brasil foram políticos conservadores como Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro, Teotônio Vilela, com o apoio discreto de militares moderados e o apoio não articulado das manifestações sindicais do ABC paulista. Esses são os verdadeiros heróis da moderna democracia brasileira e, por falta de martírios, não enxergamos nesse quadro nenhum charme político. A morte é sempre um argumento muito mais forte.
Nem sempre o que é moderno é eterno. Jean-Luc Godard inventou um cinema moderno que não existe mais, porque foi vencido pela preguiça e sobretudo pelo que já era consagrado como “o cinema atual”. Desde que Godard parou de filmar, o cinema só fez retroceder ao que foi antes dele, desistindo dos dias excitantes em que cada filme era uma proposta nova de cinema.
O Cinema Novo existiu simultâneo às suas invenções e ele reconheceu isso quando entrevistou Glauber Rocha em um de seus filmes, “Vento do Leste”. O Cinema Novo foi o cinema moderno no Brasil de então e foi capaz de influenciar o próprio Godard e sua visão de mundo. Godard estará sempre em nossa história e em nossos filmes. Como estará sempre em nosso coração.