Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Diagnósticos em debate

Diagnósticos em debate

 

Vocês têm ideia do que seja drapetomania? Provavelmente não. O estranho termo vem do grego, drapetes, fugitivo, e significa mania de fuga. Um diagnóstico médico, portanto. Foi proposto em 1851 pelo dr. Samuel A. Cartwright, da Louisiana, no escravagista sul dos Estados Unidos. Segundo o dr. Cartwright, era um mal que acometia os escravos negros que insistiam em escapar das fazendas. Esse mal, dizia o bom doutor, não tinha tratamento, mas podia ser evitado com a aplicação de chicotadas a escravos rebeldes e também com a amputação – isso mesmo, a amputação – dos dedos dos pés.


Convenhamos: a medicina evoluiu bastante desde aquela época. Isto não impede que ainda surjam diagnósticos controversos. Foi o que aconteceu com a última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Problemas Mentais (DSM), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA). Muito famoso, mas não aceito pacificamente; no passado, foram várias as polêmicas suscitadas. Um exemplo: a inclusão do homossexualismo na lista de distúrbios sexuais, o que desencadeou uma onda de protestos e levou a APA a voltar atrás, considerando o homoerotismo uma variante do comportamento sexual normal.


Recentemente novos diagnósticos foram objeto de discussão. É o caso das entidades batizadas como síndrome de risco de psicose, distúrbio de desregulação de temperamento e também aquilo que os americanos chamam de toddler tantrums, os ataques de zanga das crianças. Dois médicos ingleses, Til Wykes, do Instituto de Psiquiatria do Kings College de Londres, e Felicity Callard, da Universidade de Cardiff, publicaram artigo no Journal of Mental Health expressando sua preocupação com diagnósticos considerados imprecisos e exagerados: será que não estamos todos sujeitos a uma desregulação de temperamento? E qual a criança que, em algum momento, não grita, não esperneia?


Os diagnósticos são cada vez mais numerosos: eram 106 na primeira edição do DSM e passaram para 365 na quarta revisão, um aumento de mais de 300%. Pode ser o resultado de um refinamento dos critérios usados para categorizar entidades mórbidas, e pode alertar doutores para problemas em potencial, mas mesmo assim para muitos esse incremento parece estranho. Não falta quem veja aí o dedo da indústria farmacêutica, para a qual um diagnóstico é igual a um ou a vários medicamentos, em geral usados por longo tempo.


Vamos deixar bem claro: na imensa maioria dos casos, a medicação beneficiou extraordinariamente os pacientes. A revolução psiquiátrica dos anos 50 representou um grande avanço. O alerta se refere àqueles casos em que uma variação do normal é considerada doença. Numa época, usou-se o termo “medicalização” para a situação na qual a medicina e, sobretudo, os remédios adquirem um poder extraordinário.


Em O Alienista, Machado de Assis conta a história de um doutor que praticamente mandava em uma cidade, decidindo quem ia para o hospício. Uma situação caricatural; mas, pelo jeito, os doutores Wykes e Callard acham que não é tão impossível assim.


Zero Hora (RS), 21/8/2010