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Deus e as coisas

 

Sou um padre e acabei de descobrir que não sei o que é amar a Deus sobre todas as coisas



A TARDE em que padre Mateus invadiu o seu quarto, olhos excitados. Como se tivesse febre ou tentação da carne. Padre Lucas assustou-se com aquele rosto congestionado, as mãos crispadas.

- Que foi, padre?- Padre Lucas, o senhor sabe o que é amar a Deus sobre todas as coisas?

- Como?!- Amar a Deus sobre todas as coisas. O senhor sabe o que é isso?- Meu filho, isso é o primeiro mandamento da lei de Deus. Qualquer garoto do catecismo sabe isso!O coadjutor olhou-o sério:

- Padre, pense bem em minha pergunta: o senhor sabe o que é amar sobre todas as coisas? O que significa "sobre todas as coisas"?- Bem, eu sou um simples padre, sem instrução, já faz muito tempo que não abro um livro e já estou longe de meus estudos. Aliás, fui aluno medíocre, estudei porcamente a filosofia e, quanto à teologia, aprendi e procurei guardar o necessário para não fazer feio. Depois, vieram os compromissos, a paróquia, as necessidades materiais do culto -não tive tempo nem vontade para me ocupar com esses problemas. Mas acredito que sua dúvida é infundada, o mandamento é claro, bem enunciado, qualquer criança entende isso. Já dei milhões de aulas de catecismo e, quanto a este mandamento, nunca uma criança me interrogou.

- Mas eu não sou criança. Sou um padre. E acabei de descobrir que não sei o que é amar a Deus sobre todas as coisas. Os demais mandamentos são óbvios, simples, envolvem terceiros, configuram um comportamento social ao mesmo tempo que um comportamento religioso: não furtar, não matar, não pecar contra a castidade, honrar pai e mãe, não levantar falso testemunho são mandamentos explícitos, simples, basta o enunciado para compreender a sua finalidade. Mas o primeiro mandamento, que venho repetindo desde o catecismo, maquinalmente, da boca para fora: amar a Deus! O que é que é amar a Deus! E o resto? O "sobre todas as coisas"?

Padre Lucas olhou o coadjutor com ódio. Tanto trabalho para realizar, tantas ocupações e preocupações, e vinha aquele rapaz, mal saído da adolescência, levantar um problema inútil e ridículo!

- Padre Mateus, recebi o senhor em minha casa como auxiliar. E não como aluno. Se existem tantas dúvidas em sua consciência, fale com o cardeal, peça para voltar ao seminário, estudar mais teologia, aprofundar-se nos livros e mestres. Sou um simples padre, um humilde vigário, minha função, minha obrigação, é lutar contra o Demônio, impedir que ele me roube as almas que me foram confiadas. É assim que eu entendo a minha missão de sacerdote e de homem. Deus destinou-me a isso e para isso aqui estou, com minhas fraquezas e limitações. O resto não me interessa.

- Padre -o coadjutor era teimoso e insistia-, o senhor já absolveu algum penitente do pecado de não ter amado a Deus sobre todas as coisas?

- Todo o pecador contra qualquer mandamento da lei divina ou natural é um violador deste mandamento. Não há necessidade de ninguém se ajoelhar aos meus pés e confessar: "Pequei, padre, pela falta de amor a Deus!". É uma decorrência, uma dedução. O pecado, em si mesmo, é um ato consciente e voluntário do desamor a Deus.

Lucas quis encerrar a questão:

- Escute, padre. Não estou aqui para ensinar o rosário a ninguém, muito menos a um sacerdote mais culto que eu. Se o senhor tem tantas dúvidas, o remédio é reavaliar a sua vocação. Qualquer ordem religiosa teria prazer em receber um padre já ordenado. Não somos contemplativos, padre. Vivemos em contato com o mundo, com a miséria dos homens, com as ciladas do Demônio, com os perigos, com as necessidades. A santificação de nossa alma é quase secundária. Somos destinados a salvar às vezes com grave risco de nossa própria salvação. Isso fica por conta de Deus. Ele acertará as contas conosco e levará tudo isso em consideração. Faço o que posso, cumpro os meus deveres, dou este duro danado para manter a minha igreja. Já estou nisso há 30 e tantos anos. É tarde para mudar de vida e de estilo. Mas o senhor é moço, se acha que o seu lugar é uma ordem contemplativa, ainda há tempo. De minha parte, não colocarei embaraço nenhum. O senhor é livre.- Obrigado, padre Lucas, mas o senhor não me entendeu. No fundo, admiro o senhor. Mas ninguém poderá me ajudar.- Deus pode ajudar, meu filho.

- Padre, ouça bem: ninguém pode me ajudar. Sobre todas as coisas, isso: ninguém pode ajudar realmente a ninguém.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 23/06/2006