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Detestar é o sentimento mais bem distribuído do Brasil

 

Não é simples assim, o fenômeno exige um raciocínio mais sofisticado, mas está tudo tão confuso que se pode dizer: se fosse hoje, o Brasil estaria elegendo não quem ama, e sim quem rejeita. Segundo as pesquisas de intenção de votos, Jair Bolsonaro seria reprovado por mais de 40% dos eleitores e aprovado por menos de 30%. Será que isso significa que no fundo do coração o “homem cordial” gosta mesmo é de gostar de não gostar? As redes sociais são o exemplo mais óbvio dessa contradição. Pelo que consta, as pessoas entram para assistir ao desempenho de quem está lá principalmente para maldizer. Uma amiga acaba de desabafar: “saí, não aguentava mais”. Nem em torcida organizada de futebol há lugar para tanta raiva. Num país famoso pela má distribuição de bens, detestar seria hoje o sentimento mais bem distribuído entre nós.

Se precisasse de mais exemplo, citaria o comunicado que recebi do diretor para a América Latina do Repórteres Sem Fronteiras, Emmanuel Colombié, denunciando a “grave agressão contra Sandoval Braga Júnior”, diretor da Rádio União FM de Jaguaruana, do Ceará, que teve a tíbia fraturada por uma bala. Ele informava que “três radialistas já foram assassinados em 2018 no Brasil, outros dois escaparam por pouco da morte”. Todos por reportagens e programas com críticas a autoridades e políticos locais. A campanha eleitoral acirrou os ânimos bélicos, e o pretexto de desconstrução da imagem do adversário deu lugar à troca de manifestações explícitas de ódio, que chegaram ao extremo de um atentado ao ônibus da caravana de petistas e à tentativa de assassinato a faca do candidato Bolsonaro. A violência está grassando de lado a lado, mas o culpado é sempre o outro.

A propósito, li o seguinte texto que pretendia ser pacifista: “O Lula ajudou a construir o país. Enquanto o governo do golpe, seja na figura de Temer ou de outro participante, simplesmente promove a destruição do Brasil. A gente não vai sucumbir ao ódio”. Sem perceber, essa pessoa não vai sucumbir ao ódio, já sucumbiu.

Se não me falha o Google, é de 1770 antes de Cristo o Código de Hamurabi, que prevê a Lei de Talião, ou seja, a do “olho por olho, dente por dente”, que não deu certo. Como disse o líder pacifista Mahatma Gandhi, “olho por olho e o mundo acabará cego”. Apesar disso, muitos insistem em continuar adotando-a como política de Segurança Pública, o que faz do Brasil o país com a polícia que mais mata e mais morre no mundo. Ou, dito de outra maneira, só na última década 553 mil brasileiros perderam a vida por morte violenta. Ou seja, 153 mortes por dia ou a queda de um Boeing lotado.

O Globo, 29/09/2018