Não sou político, mas devo estar aprendendo com o exemplo, porque prometi um par de vezes aposentar definitivamente meu caderninho de implicâncias com a linguagem, até porque não quero ocupar este espaço com mais uma coluna sobre o bom uso de nossa língua, para o que, diga-se a tempo, não sou muito qualificado. Tem bastante gente fazendo isso nos jornais, com competência. Mas não cumpri — aliás, não estou cumprindo agora — as promessas. Peço a indulgência geral e prometo, agora solenemente, que tão cedo não torno a outra. Bem verdade que os políticos também fazem promessas solenes, mas espero não imitá-los no hábito de esquecê-las.
Tento usar a língua direito, estudo um pouco, mas no geral toco de ouvido e creio que minhas notas encontram eco em qualquer um que tenha aprendido algum português na escola, não são “especializadas”, ou coisa assim. Devo prestar mais atenção na língua que a maior parte das pessoas porque sou escritor, vivo mexendo com as palavras e o que acontece com elas me afeta, às vezes de forma meio doida. E escrever para jornal ajuda a preservar o ritmo de jogo, a gente fica mais alerta para as bobagens, ou até absurdos, ditos ou escritos sem sentir e frequentemente sem querer. (Um amigo meu, vítima da mania de fazer o sujeito seguir-se de um pronome, como em “a realidade, ela é”, me telefonou, depois que eu escrevi sobre o assunto. “Eu não consigo falar de outro jeito acho, que vou ter que me internar”, disse ele. “Essa mania, ela vai me matar.”) Mas não pretendo encarnar o chato que vive catando o “erro de português”, até porque esse negócio de erro de português é muito relativo e minha preocupação é com a preservação da eficácia e da precisão da língua, atitude que está longe de ser elitista, como muita gente qualifica qualquer coisa expressa por um ou mais polissílabos. Uma língua que perde ou avilta seus recursos não pode aspirar a permanecer uma língua culta e servir para adequada expressão científica, filosófica e literária, temos que cuidar da nossa.
Nem pensar em patrulhar erro de português e, aliás, é por causa de certas patrulhas que tomei algumas de minhas notas. Penso particularmente na patrulha da colocação de pronomes, que, para os patrulheiros, é uma coleção supersticiosa de regras de aplicação às vezes ridícula. “O senhor disse que me queria ver”, expresso desta forma porque o “que” atrai o pronome, força um pouco o falar do brasileiro, mas vá lá, não chega a ser ridículo. Contudo “o caderninho é tão chato que eu me resolvi livrar dele” é dose, tanto por escrito quanto, e mais ainda, na conversa. Ou seja, decora-se que o “que” atrai o pronome e se ignora uma exceção que mesmo os mais rezinguentos gramaticões de outrora sempre fizeram, quando, nessas locuções verbais, o segundo verbo está no infinitivo. Na fala, talvez nem tanto, mas na escrita fica até elegante construir “que eu resolvi livrar-me dele”.
Lembre-se ainda que, como já dizia o grande mestre filólogo M. Said Ali, as palavras não são eletromagnetos, para ficarem se atraindo lá e cá. Na verdade, qualquer leitura de clássicos da língua como Antônio Vieira e Manuel Bernardes ou mesmo do fundador Camões vai render um balaio cheio de pronomes colocados “erradamente”. A colocação, tanto na fala quanto na escrita, tem a ver com um sem número de fatores, um dos mais importantes dos quais o espaço me obriga a citar taquigraficamente, é ser esse pronome, no enunciado, tônico ou átono. Certos pronomes que até os portugueses pouco letrados colocam “corretamente” são átonos em Portugal, mas aqui viraram tônicos e os colocamos como os percebemos, geralmente sem nada de errado. E menção especial deve ser feita ao pronome solto entre dois verbos, como em “resolvi me livrar”. Isso está “errado” e, como “resolvi-me livrar” é também ridículo, além de não querer dizer a mesma coisa, fica-se obrigado a “resolvi livrar-me” como única opção. No entanto, os brasileiros dizem, com o “me” tônico, “resolvi me livrar” e não há razão para demonizar isso, pois é assim no falar cotidiano até dos que observam costumeiramente a norma culta. E vamos admitir que ainda haja resistência quanto ao uso dos pronomes oblíquos no começo de oração. Certas coisas persistem mais que outras e deve haver alguma razão para que ainda usemos a ênclise (pronome depois do verbo) em discursos e ocasiões formais. Mas dizer “dê-me” ou “dá-me” na conversa dá a impressão de que o falante é aluno de um colégio de freiras de antigamente ou usa brilhantina no cabelo, ou coisa assim.
E, imagino que por causa do “companheiros e companheiras”, que por sua vez remonta a “brasileiros e brasileiras”, tudo depois que o general de Gaulle disse “français, françaises”, agora a velha e sedimentada norma, segundo a qual o plural das partes de um conjunto compreendendo os dois gêneros fica no gênero masculino, parece que não vai valer mais. “Brasileiros” engloba tanto homens quanto mulheres e não há nada para uma feminista dos velhos tempos reclamar. Na nossa língua, por exemplo, “pessoa” é feminino e nenhum homem se queixa de ser chamado de “uma pessoa”. Mas daqui a pouco, pelo visto, alguém é capaz de inventar o masculino “pessoo”, para não ofender os brios dos machões, que também são filhos de Deus. Ou muito me equivoco ou ouvi o presidente do Tribunal Superior Eleitoral dirigir-se aos eleitoras e eleitores. Está sendo realmente criada uma nova língua e o final do período anterior devia ser, de acordo com ela, “às/aos eleitoras e eleitores”. Imagino haver quem ache isso chique. Talvez dizeres tradicionais venham a ser reformulados, em versões como “quem for brasileira ou brasileiro me siga”. E já de novo se finda o espaço, sem que as notas tenham acabado. Mas mantenho a promessa. Se não cumpri-la, pelo menos não pedi voto.
O Globo, 8/8/2010