RIO DE JANEIRO - Faz tempo, dirigindo um carro em Montevidéu, cometi uma barbeiragem qualquer e me chamaram de "anormal". Nem dei bola. Não aprecio normas, não as tenho nem as cultivo. Mas outro dia, numa rua aqui do Rio, enfrentando um congestionamento, ultrapassei sem poder uma fila e me chamaram de "palhaço".
Não doeu como deveria, mas me senti como o criminoso que de repente é denunciado. Os palhaços sempre me impressionaram, não os achava engraçados, pelo contrário, tinha medo deles, de suas calvas, de suas vozes arranhadas. Em criança, quando me levavam ao circo, era um suplício, sonhava com eles, despertava coberto de suor. Eram desgraças coloridas, quanto mais coloridas mais desgraçadas.
Mais tarde, já adulto, encarnei num deles quando li o "King Lear", que convocou o bobo da corte para se distrair dos problemas que o afligiam, mas logo o mandou embora, dizendo: "És um bufão triste".
Taí. Todo bufão é mesmo triste, e os palhaços, tanto no picadeiro como fora dele, têm os olhos mais do que tristes por trás da máscara de alvaiade, a enorme boca pintada de vermelho disfarçando a vontade de chorar, chorar um pranto também enorme, que mistura todos os motivos que qualquer homem tem para chorar.
Em matéria de bufão, não fiquei no "Rei Lear". Um dos primeiros e raros sonetos que consegui decorar era uma chibatada não apenas em cima dos palhaços mas de todos os profissionais de qualquer ofício. Autoria de um padre cearense que andava nas antologias de então. "Ontem viu-se-lhe em casa a esposa morta e a filhinha mais nova tão doente; hoje, o empresário vai bater-lhe à porta, que a platéia o reclama impaciente".
E o soneto termina: "Enquanto o lábio trêmulo gargalha, dentro do peito o coração soluça".
Folha de S. Paulo (SP) 26/2/2008