A Conferência de Alexandria, recém-finda, reuniu na Biblioteca reconstruída, e de impacto simbólico incomparável, pensadores do Ocidente como do Islão, para discutir, após a guerra do Iraque, o novo repto à convivência internacional, fundada na construção da paz, e no diálogo como seu instrumento a toda prova. Até agora depararíamos idas e vindas, recuos táticos ou escaramuças maquiavélicas. Mas, de princípio, não se saía da crença na interlocução entre os povos - e na visão das guerras como acidente ou entorses ao progresso mundial.
A Conferência deu-se conta de até onde o convite agora, aos mesmos diálogos, na iminência da volta aos conflitos de religião, é uma clara ideologia, a manter vantagens táticas de um confronto sem, na verdade, prover a um desarme das tensões globais. Não basta falar-se do quanto distamos anos-luz de um equilíbrio mundial, apoiado na velha guerra fria, ou num equilíbrio de retaliações, ou num jogo de alianças sobre uma conjuntura imediata de vida econômica ou política. A globalização assegurou uma escala limite às dinâmicas de mercado, mas tão-só para evidenciar os conflitos emergentes que acarretariam a outros valores mais fundos dos atores sociais de nosso tempo. E se foi como “cruzada” que o Ocidente, a partir da Casa Branca, reagiu ao terrorismo baixado sobre Manhattam, só se adensou a consciência dos perigos da terraplanagem modernizadora, ou da iminência de um chamado à guerra santa, contra a expropriação da alma coletiva e da cultura por um universo hegemônico.
O encontro de Alexandria, promovido pela Academia da Latinidade, foi, entretanto, mais além da crítica ao choque desses fundamentalismos, atentando ao quanto, sobre a hecatombe das torres gêmeas, o poder ocidental assumia condições novas de comando coletivo, chegado a uma verdadeira cibernética universal. Derrubava-se, ao mesmo tempo, a força dos organismos internacionais para a contenção do poder militar e econômico extremo da superpotência, no reparar o atentado aos valores e à grandeza da nação americana, de par com o clima de insegurança perpétuo desfechado pelo terrorismo difuso. Entrava-se na civilização do medo, e na rapidez de sua escalada na passagem do terrorismo difuso dos homens-bomba ao terrorismo de Estado, com a marcação das lideranças governamentais como Arafat para morrer à mira dos mísseis, disparados dos helicópteros, descidos do céu do superaparato justiceiro.
Pensadores em Alexandria, como Alain Touraine ou Jean Baudrillard, repetiriam o quanto hoje a hegemonia não é uma dominação exasperada, mas o advento de uma condição de controle inédito na história. A potência de aparelho militar inaudito já se reconhece como assumida e sofisticada cibernética social; antecipa-se ao movimento dos adversários para aniquilá-lo, e troca a “terra de ninguém” dos antigos extermínios, prévia invasão do mundo interior dos antagonistas. Começa pois o seu poder, pelo abate da subjetividade, a partir da erradicação de toda individualidade de possíveis adversários na cena internacional.
A sociedade se remonta a partir de uma modelização, em que as instituições, as representações, os modos de ser que embasam o ator social diferente se tornam os simulacros do que estabeleça e cultue o poder onipotente. Do conceito pasteurizado de “democracia” à noção do “inimigo”, em conflito perpétuo, ao contrário das pazes, armistícios e bonanças que sempre intermediaram as guerras clássicas.
A Conferência de Alexandria diante do fenômeno básico desse monopólio absoluto do desempenho coletivo, procurou reconhecer, ainda, novos eixos de protagonismos que pudessem manter a esperança da interação entre os homens, a pôr a respirar a diferença, no mundo sufocante que começa. Sobram contradesempenhos deste universo fechado do poder, preso a sistemas e subsistemas, todos devolvidos à mesma matriz? Esse extremo de controle social geraria, por si mesmo, a sua contradição? Ou as novas cibernéticas sociais relegariam a tempos mortos as visões dialéticas da contradição histórica, como chegou ao início do novo milênio, para ser nela instantaneamente engolida? É a multidão só, forte, justamente, pela sua saída das carapaças do aparelho do Estado, o nervo ou o embrião do que se possa opor à ordem hegemônica em formação? Se a Velha Europa fez-se protesto monstro, nos milhões às ruas de Barcelona, Madri, Londres ou Paris contra a guerra do Iraque, em fevereiro de 2003, até onde pode ela repetir a manobra? Por quanto tempo a espontaneidade coletiva resistirá a ser devolvida a mais um anel daquela reordenação coletiva global, que hoje constitui peça crítica da pirâmide de comandos do Salão Oval, em Washington?
Repete-se - como se perguntaram Jaguaribe, Rouanet ou Vattimo - diante do tecido hegemônico, a corrosão normal da dialética, ainda do tempo da dominação, do colonialismo ou dos impérios clássicos? Das estruturas que, afinal, sabiam onde paravam, mantinham fronteiras, e resguardavam, ainda, uma mirada de diferença no conviver com os bárbaros dos confins? E serem por eles derrubados, nas seqüências conhecidas das quedas de Níveis, Babilônias ou Romas. Não nos damos conta de todas as dimensões do controle coletivo que permite hoje a domesticação do imaginário, senão dos inconscientes coletivos, incapazes de transformar o seu inconformismo, em nova e autêntica representação da realidade que os enclausura.
Se Alexandria discutiu toda a repercussão do fenômeno da “civilização do medo”, como segunda natureza da hegemonia, mal começamos hoje a buscar onde se manteriam os “maquis” da diferença em bolsões da história que acaba, e tem, talvez, o tempo larvar para um recado final. E não é num mundo de bárbaros, nem de réprobos, gerados pelas contradições do colonialismo ou da exclusão, que a individualidade coletiva persistirá como contraponto da hegemonia. Onde estaremos em futuro programado e prometido com a reeleição de Bush, a mantermos em marca cada vez mais subversiva, o gesto e a memória da individualidade frente ao planeta da esterilidade final da ditadura do mesmo e dos simulacros sem retorno?
Jornal do Commercio (RJ) 30/4/2004