As entradas em campanha dos partidos para a eleição municipal só fizeram referendar a sensação clara da prática desaparição do populismo, tal como encarnado por Leonel Brizola frente às próximas urnas. Fica a marca enorme do herói, da personalidade de que não se poderá apartar toda luta pela redemocratização do País já marcada, nos seus pródomos, pela dificuldade de acesso de Jango à Presidência, quando da renúncia de Jânio. Todas as manifestações do choque nacional com a morte quase instantânea deste nosso vulto tutelar põem em causa a expressão objetiva, ponderável de sua herança. É como se Brizola tivesse sobrevivido ao que representasse a força de sua pregação e de seu poder de mobilizar uma esquerda brasileira. Isolou-se no correr do Governo Lula na primeira ruptura contundente com o Planalto, repetida no recado amargo e irredutível de seu artigo semanal, no canto de página de nossos periódicos.
Toda uma mesma e definida cantilena exprimia a angústia objetiva de uma dificílima política de mudança dos rumos do Governo, preso às dificuldades da largada e da necessária paciência que pediria à população. O ex-governador do Rio Grande e do Rio mantinha-se implacável, no tema da nossa dependência radical da globalização e de como o atual Executivo só fizera manter a entrega de pontos do anterior e a completa rendição ao modelo neoliberal. O que está em causa com Brizola é esta efetiva passagem em todo o drama das esquerdas, frente à hegemonia de Washington, e de uma afirmação, em tese, do princípio nacionalista, e de como ele deveria responder a um quadro de condicionantes tão gigantesco quanto, hoje, o dos donos do poder central, e da margem deixada ao país que queira ainda infletir este jogo para o ganho da autodeterminação. Esta palavra, em si mesmo, já ecoa por sobre mais de meio século, como um mantra mesmo, do que, então, acalentava-se como as revoluções nacionais pelo desenvolvimento. Seriam conquistadas, nas periferias, por um controle crescente dos antigos balanços de pagamento coloniais, graças a força de um Estado-empresário, e a viabilidade da aliança das nações fora dos eixos do sistema. Era o tempo de todas as formas do neutralismo positivo, na manutenção ainda - tal como se viu na "guerra fria" - de algum poder de barganha, fora das matrizes de decisão contemporâneas.
O determinante, em Brizola, foi o de ter, em meio século, mantida absolutamente indene a sua crença, a violência da sua crítica, e a denúncia contundente dos adversários. Se não variou a perspectiva em que sempre se viu, como um futuro presidente do País, avançando, as mudanças logradas, no plano dos governos estaduais, exercidos no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Em nosso caso, marcaram de vez experiências nitidamente inovadoras como as dos CIEPs. Traduziam, ao mesmo tempo, a obra de Darcy Ribeiro ao seu lado, nessa marca única em que a genialidade do sucessor de Anísio Teixeira e Paulo Freire desimpedia o outro braço do exercício da cidadania do País lumpem ou marginal, nesta cultura dos fazeres em que o Chefe da Casa Civil de Jango nos deu à civilização da festa; criou a nossa ágora tropical, dentro da monumentalidade, genuinamente popular, do risco de Niemeyer no Sambódromo.
Brizola permanece nesta dimensão de arcano do Brasil, afirmando como norte de uma autodeterminação. Não é sua a busca da praxe deste desempenho; o enfrentamento das dificuldades de um balanço de pagamentos destruído, ou a conquista de um aparelho de Estado nacional, frente às pressões assimétricas desta nebulosa e envolvente economia de mercado. Brizola passou a mensagem monolítica, nesses tempos, do alerta contra o que via como a espoliação e da rapina deste mundo capitalista, inexpugnável na sua multidenominação repetida pelo caudilho gaúcho: neocolonial, neoliberal, globalizante.
O protagonismo único da resistência lhe levou a criar a "Cadeia da Legalidade", confrontar a ditadura militar ,e dela sair com os mais gigantescos eleitorados para preencher a República civil, assumindo o governo fluminense. Nele encastelou-se na mirada-limite deste jogo de avanço da Nação, que lhe permitia, ao mesmo tempo, conservar-se como pólo; arredio às novas combinações de poder; cioso de que veria sempre, na vida política, como o produto de um voluntarismo e de uma coragem sem restos. Não expôs a crivo crítico o populismo de que era o herdeiro fulgurante, nem influiu, num jogo de massas eleitorais, no trabalho da nova sindicalização ou dos movimentos sociais. Por elas, ao mesmo tempo, o PT construía uma ascensão coletiva, apoiada numa tomada de consciência generalizada e neste labor do concreto, em que o transformou no veículo da ascensão dos excluídos.
A vice-Presidência de Lula, na penúltima campanha, traduzia mais um percurso simultâneo de paralelas, do que sua efetiva convergência, de onde poderia emergir o caminho concreto de uma mudança sofrida, nas suas contradições, nas suas transigências. Sobretudo no noviciado da paciência, tão contrário ao breviário do caudilho gaúcho-carioca.
A súbita desaparição de Brizola só tornou mais clara esta dimensão de arcano ou de pontos cardeais, em que soube o ex-governador, de maneira ímpar, fazer sempre do político um terçar de opções e uma legítima construção de destinos. Mas o tom e a marca era já oracular, no amargor dos anúncios, e na intransigência das suas rupturas, não sem manter sempre o entusiasmo da interlocução; o sorriso da abertura ao correligionário, que sabia ouvir sempre no cálido da recepção e do embarque na história e no evento que passavam a partilhar. Sem maior exigência crítica partiam ao arroubo da hora, e do clarim de epopéia, que o governador soube sempre criar uma ribalta nacional desde a cadeia da legalidade. Na grande mirada, sempre, Brizola pôde eximir-se da ganga de que se faz a realidade e do trabalho exasperante com que, afinal, mudam-se planos históricos, e traz-se o excluído ao procênio, tantas vezes fora do cenário grandioso da promessa original.
Vice-presidente de uma Internacional Socialista o ex-governador marcava um verdadeiro divisor de águas no marco ideal - inclusive quanto à globalização - de que só poderia se apartar o PT, no dia-a-dia da luta contra a dominação e nesta militância, castigante para os pró-homens dos grandes nortes - do assembleísmo, da discussão infinita de suas conclusões. Mas, dificilmente, encontraria-se destaque mais nítido, nesta chegada da esquerda, ao poder que é da oposição entre o PDT, de imediato, e o partido de Lula. É da altaneria de herói - e do talho irredutível de sua face - que deveremos a Leonel Brizola o sinal de por onde não deve ir, de vez, o País. O que vá adiante, e conquistado a cada passo, o faz Lula que já atravessou o desencanto, calejou-se pelo anticlímax e se faz - com o Brasil de fundo que não o larga - servidor da paciência do dia seguinte.
Jornal do Commercio (RJ) 30/7/2004