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Depois da praça

 

Todos os encontros, os abraços e os perdões da Praça de São Pedro ainda abafam, pelo seu portento, a implacabilidade do day after. Mais do que apenas atentar ao quanto perdurará o desarme instantâneo ou a sua figuração diante da lógica implacável da ''civilização do medo'' avultada sobre os meros imperativos da geopolítica de sempre, e da eternidade da realpolitik. Paralelamente ao velório do Pontífice realizou-se encontro inédito em Paris de protagonistas do dito ''eixo do mal'', ou de lutadores pela lucidez internacional a tentar, sem retórica nem cinismo, falar, de fato, de um diálogo aberto após o reforço da posição americana para um Bush-bis, apoiado na avalanche torrencial de sua votação. E como falar com este Ocidente empedernido atrás da cruzada, ou da transformação da luta antiterrorista em guerra perpétua, a chegar a alvo de suspeita sobre populações como as marcadas por Islão. Bouterflika, da Argélia, insistiu no debate sobre esta ilação implícita, chegada ao inconsciente das populações do Ocidente, em transpor a ameaça onipresente da Al-Qaeda e o antagonismo larvar, senão suspeição crescente com o mundo islâmico.


Ao lado do mundo do Salão Oval, e do Ocidente duro, cresce este universo vindo do orbe clássico romano e da nossa história sul-americana, representado pela matriz latina de nosso tempo. Ela comunga naturalmente com o Islão desta bacia mediterrânea, permitindo a transfusão do mundo clássico ao Renascimento, como sob essa mesma característica, os Impérios, ao longo deste anfiteatro, sempre tiveram um respeito de base pelo multiculturalismo. Deparamos o perigo sem precedentes de uma cruzada que não só tem o botão das guerras imediatas, e em paralisia eletrônica do adversário, mas vai ao rapto do seu mundo interior impondo-lhes pela vertigem da globalização midiática, este começo da dependência da virtualidade.


Que liberdade é a que entende o Salão Oval diante desta experiência por outros povos, e que democracia é a que vem pelos modelos desembrulhados frente às expressões de vontade popular praticadas pela luta antiautoritária também fora do Ocidente? Khatami, aliás, no encontro exaustivo de um dia em Paris, a 5 de abril, ao se comprometer visceralmente com a democracia, evidenciou as possíveis diferenças de prioridades entre acatamento de minorias, ou rotações de cargo, ou a prática das eleições diretas, tantas vezes transferidas ao ritual do status quo. Os valores que se prezam dentro do mesmo compromisso último, variam e não pode se transformar na receita em que as hegemonias se impõem à dimensão essencial da diferença que é o adubo da verdadeira liberdade.


É nessa linha que se abre esta semana, em Ankara e Istambul, uma nova Conferência da Academia da Latinidade, que dentro desse mesmo Ocidente se entrega, desde de 99, à busca do mais aberto diálogo entre as civilizações a que nos convoca o próprio Presidente iraniano às vésperas de deixar o poder. É nesse propósito que a Academia foi a vários marcos islâmicos, mantendo sempre o contraponto, com os focos do mundo de cá, que quer escapar à cruzada. Dirigiu-se à Teerã como retornou ao Rio para tornar à Lisboa e depois à Alexandria, Paris e Nova York e, agora, partir para o vis-à-vis turco. A dimensão talvez com toda perspectiva mais estratégica deste enlace internacional onde a Turquia se abrirá para um papel tão relevante neste reequilíbrio do universo, menos pela geografia do que por comunidades de história e cultura.


Nem por outra razão se propõe essa entrada de Ankara na União Européia na expressão de mais de um milênio de história, onde os Impérios do Ocidente, como os árabes e Otomanos, criaram em conjunto a própria matriz da história que recebemos ao fim do milênio. O ator político internacional que pode confrontar a hegemonia americana amplia-se, também, do dito Velho Continente para o Magreb e, sobretudo, para a Turquia. E aí - e é o que se discutirá a semana que vem, a atentar a esse fenômeno emergente de toda essa Eurásia islâmica que quer fazer da Turquia a sua cabeça a partir de um mesmo alinhamento Mediterrâneo. O Uzbequistão, Turkmenistão, Quirquistão, Azerbaijão, todos viveram a experiência soviética para reencontrarem agora, após a glasnost a sua experiência de nação contida, e nela o rebrotar islâmico de suas matrizes históricas. Também como a Turquia, podem se entreolhar neste atalho que a modernização lhes permitiu, sem a restauração da teocracia religiosa, da opção iraniana que medeia geograficamente entre o país de Ataturk e estas Repúblicas eurasianas, em retorno às suas raízes. A questão turca no entrar ou ficar fora da União Européia não reflete apenas o problema desta mudança de balanços geopolíticos que representará a incorporação que seria contra o maior país da União, com os seus 75 milhões, somando-se ao quase meio bi dos parceiros atuais de Bruxelas.


O importante é que, a sobreviver a União Européia como prevê a Constituição ora em plebiscito, é também muito mais do que um consórcio de uma mera aliança política ao modo dos clubes das nações, tal como uma UN em miniatura e estéril para a dimensão histórica que merece. Todo o propósito dos pais fundadores dessa UP é o de fato superar a nação para encontrar um padrão de uma nova cidadania internacional, de exigência de mudança social logo, de avanço dos Direitos Humanos e de capacidade de pressão democrática direta do povo. O fenômeno único de 15 de junho de 2003, dos milhões de europeus em Barcelona, Roma, Madri ou Londres para protestar contra a invasão do Iraque foi o sinal premonitório do que se quer com o passo à frente do voto popular pela Constituição Européia. É através de diálogos como o que agora começa no Bósforo que se garantirá uma modernidade prospectiva sem os riscos dos fundamentalismos, das cruzadas e da ''civilização do medo''. A coletividade pelos seus intelectuais antecipa-se aos Estados nas viradas de página.


 




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 20/04/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 20/04/2005