A grande festa da democracia já está rolando, embora a animação não pareça das mais intensas. Pelo menos para mim, nos cada vez mais escassos momentos em que consigo assistir ao horário eleitoral sem dormir, lembra esses circuitos de Fórmula Um onde as ultrapassagens são quase impossíveis e a corrida se define logo depois das primeiras três ou quatro voltas. Espero não violar nenhuma lei eleitoral, ao endossar a opinião de praticamente todo mundo com quem converso, ou seja, o dr. Serra já perdeu, anda com jeito de perdedor e às vezes a campanha dele dá a mesma impressão que a de um time de futebol em campo apenas para cumprir tabela. Observando-a em andamento, a gente às vezes precisa até de um pequeno esforço, para recordar que se trata de um candidato da oposição.
Ouso ainda achar que a campanha dele partiu de um pressuposto exemplarmente burro. Não sei se aqueles que a conceberam se basearam numa analogia com o que, segundo me contam, fazem os lutadores de jiu-jítsu, os quais usam a força do adversário contra esse mesmo adversário. Se não foi isso, ficou perto. Já que não se pode fazer nada contra a popularidade do presidente Lula, vamos então usar a força dessa popularidade contra sua candidata.
Ideia de Jericó. Não me refiro à cidade bíblica cujas muralhas ruíram por obra das trombetas de Josué, refiro-me à elegante pronúncia de Zezito Cabecinha, lá de Itaparica, que não conhecia a palavra “jerico” (só conhecia “jegue”) e a leu “jericó” na primeira vez em que a viu, de maneira que até hoje designa como ideia de Jericó qualquer juízo que lhe pareça pouco inteligente. Perfeita ideia de Jericó, essa corporificada na campanha “oposicionista”. Bota lá a imagem do presidente Lula bem visível nos meios de comunicação de massa, bota o nome dele nos jingles. Para mim, isso é mais ou menos a mesma coisa que a Pepsi-Cola fazer propaganda estampando a marca da Coca-Cola em todos os seus comerciais – e com uma voz off no final dizendo “Pepsi-Cola: tão boa quanto Coca-Cola!” Ou, talvez, um pouco mais no espírito da atual campanha da alegada oposição, um ator simpático falando para o telespectador: “Agora que você se deliciou com sua Coca, por que não experimentar uma Pepsi?” É em algo assim que essa campanha resulta. Eu pensava que usar uma marca e uma imagem era coisa muito bem entendida por publicitários, marqueteiros e outros cientistas sociais, mas, pelo visto, não é. Ou então o burro sou eu, deve ser. De qualquer maneira, acho que, a esta altura, saiu tudo pela culatra e a força do adversário não tem funcionado contra ele, mas provavelmente a favor, como parecem corroborar as pesquisas eleitorais.
E, lá no meu sertão, como andará a festa? O brasileiro não sabe votar, avaliação todos os dias repetida, até mesmo num texto falsamente atribuído a mim, que circula na internet e que já desisti de desmentir. Se isso se refere aos brasileiros pobres, miseráveis ou esquecidos nos cafundós, não tenho tanta certeza de que representa a verdade. Que quer dizer “votar certo”? O eleitor vota certo, digamos, quando vota no candidato que representa seus legítimos interesses e aspirações. Nesse caso, quando vende seu voto, ou o troca por uma dentadura, um par de sapatos ou, melhor ainda, um emprego, o tal eleitor “inconsciente” não estará votando certo? Em muitos casos, somente na próxima eleição é que ele vai ver esse pessoal que ora compra seu voto. A eleição é uma ocasião preciosa e rara que se oferece a ele. Durante a temporada eleitoral, ele é cumprimentado, é escutado e elogiado, vira até gente e recebe alguma coisa de um mundo que o ignora e abandona o resto do tempo. Que outra serventia tem o voto para ele? Como vão caber no horizonte dele as questões discutidas pelos “esclarecidos”? Que real diferença, para ele, existe entre um deputado e outro, a não ser que um recompensa o voto com uma graninha, um sapatinho, uma dentadurazinha, uma colocaçãozinha – e o outro nem isso? E, como nem um nem outro jamais fizeram nada para beneficiá-lo, estará votando errado, ao ser recompensado pelo seu voto da única forma que a experiência o autoriza a ver como viável?
E os que votam “certo”? Aqui de novo há uma escala. Quem furta galinha é ladrão; quem furta muitos milhões é um financista vitimado pelas vicissitudes do mercado; quem furta bilhões é um grande homem. Matou um, é assassino; matou milhões, é grande líder. Da mesma forma, quem negocia seu voto por um emprego vota errado. Em compensação, votam certo os que negociam seus votos por uma legião de empregos, como fazem os políticos profissionais que já hoje nem se aguentam, tamanha a sede de ir ao pote assim que o novo governo tomar posse, dando-nos volta e meia a vontade de pedir calma, que vai dar para todo mundo, embora, levando-se em conta a voracidade e a eficiência com que saqueiam e dissipam, talvez o seguro seja estar entre os primeiros a abocanhar, pois de repente a fonte pode secar.
Saber votar, por outro lado, consola pouco os que acham que sabem. Todos os objetivos de todos os candidatos (espero também não ter violado nenhuma lei eleitoral, por haver falado acima somente nos candidatos mais cotados nas pesquisas – temo, aliás, que no futuro, a julgar pelas tendências correntes, isto de fato venha a constituir crime eleitoral e até os livros de História do Brasil sejam obrigados a dedicar espaço rigorosamente igual a todos os presidentes da República) são sempre os mesmos. Construir um Brasil mais justo, mais igualitário, com cidadania. E porque tal, porque vira, etc. e tal. É tudo a mesma coisa, tudo fácil de dizer. E assim, mesmo nós, os que achamos que sabemos votar, enfrentamos dificuldades de escolha. Não estou precisando de dentadura no momento, mas um parzinho de sapatos talvez caísse bem.
O Globo, 29/8/2010