As recentes manifestações dos ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi quanto à ação do aparelho policial no quadro de crescente violência brasileira reforçam um dos aspectos dominantes do avanço da democracia profunda no Brasil. Ou seja, o respeito aos direitos humanos, vindo de par com a maior interdependência e autonomia dos poderes da União. O ponto crucial deriva da convocação das Forças Armadas para garantir a ordem social interna numa inevitável zona gris, frente ao papel das polícias. No seu amplo descortino, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, por outro lado, reconhece o quanto o deslinde final dependerá de uma reforma da Carta.
No entrementes aí está o horror inaudito do massacre dos jovens do Morro da Providência, nesse quadro de promiscuidade de tenentes e sargentos com traficantes, e justiçamentos selvagens entre bandidos, a que os militares serviram de acólitos. Paulo Vannuchi tornou bem claro o quanto a desfaçatez da argüição de ofensa ao brio das Forças Armadas, pelos ditos moleques, envolve também, e de logo, a descriminalização deste agravo, como sugere a Convenção de Direitos Humanos da OEA.
Esse texto, de que o Brasil é signatário, guarnece o nosso regime contra o disparo de rixas indiscriminadas sobre alegação de ultraje à pátria. Noutra vertente, e exatamente com vistas ao cenário internacional em que o Brasil reponta na linha de avanço democrático, o ministro Tarso Genro evidencia o enorme progresso tecnológico do sistema dos grampos e das escutas, tornando virtualmente a população brasileira, e a nossa garantia cidadã, prisioneiras da malha eletrônica.
O tema será prioridade da próxima pauta da Assembléia Geral das Nações Unidas. E enfrenta a justificação inclusive para essa rede implacável do perigo do terrorismo, do estado de vigília, das escutas internacionais para um próximo movimento da Al Qaeda, ou desse novo terrorismo anônimo, que nos deixa, hoje, nos antípodas da cultura da paz. Em que foro se discutirá esse novo risco diante das garantias constitucionais da pessoa e do que seja a sua intimidade, sob o quadro de prontidão e de escuta preventiva, determinada inclusive por autoridade judicial?
A Corte de Haia, que discute os crimes contra a humanidade, atenta a essa condição fatal que expropria, de vez, a intimidade dos direitos da pessoa. Soma-se o avanço tecnológico à aceitação desse estado de verdadeira necessidade social no universo exposto, sem quartel, ao terrorismo e ao homem-bomba de todos os quadrantes ideológicos. Ao mesmo tempo, o progresso da "investigação científica forte" – a que se refere expressamente Tarso Genro – deixa-nos inteiramente ao arbítrio da autoridade policial, na negociação da matéria-prima eletrônica, decorrente desta escuta universal.
Na convergência com o presidente do Supremo encontram-se hoje os ministros da Justiça, da Defesa e dos Direitos Humanos, a se dar conta de como a carta cidadã do doutor Ulysses deve continuar na ponta do resguardo da pessoa em nosso tempo. A salvar direitos quase perdidos, quando a exasperação da violência social impõe um pseudo e vicioso dilema entre segurança e democracia profunda.
Jornal do Brasil (RJ) 9/7/2008