Parece que Olavo de Carvalho compreendeu finalmente como funciona a Lei Rouanet e ensinou o mecanismo a seus leitores e discípulos. A propósito de um filme do cineasta Josias Teófilo, supostamente sobre Jair Bolsonaro, ele diz na web que “a Ancine não deu, nem vai dar um só tostão ao Josias. Só deu a autorização legal para ele tentar obter patrocínio privado. Os patrocinadores é que vão decidir se dão o dinheiro ou não”.
Bingo! É assim mesmo que funciona a Lei Rouanet: o Estado dá autorização para que o produtor corra atrás de investimento junto a empresas e contribuintes, que poderão descontar seu valor do imposto a pagar, como incentivo à cultura. Diga-se de passagem, não é esse o tipo de financiamento usado, em geral, pela indústria cinematográfica, cujos filmes são feitos graças à Condecine, uma taxa paga por todos os produtos audiovisuais consumidos no Brasil.
Assim, ao contrário do que se diz tanto por aí, sobretudo nas redes sociais, meios de comunicação onde abundam a leviandade e a irresponsabilidade, nossos filmes não são produzidos através de recursos do Estado, mas de recursos da própria atividade. Como o cinema não está no orçamento do Estado, os cineastas não têm como “mamar nas tetas” dele, como são acusados de fazer pelos inimigos do país.
O audiovisual é uma economia criativa e uma atividade cultural estratégica. Cinema, televisão, VOD, enfim, toda forma de registro de som e imagem é fundamental para a compreensão do que somos e do que queremos ser. O que seria, por exemplo, do capitalismo liberal americano sem Hollywood? Como iriam nos convencer a usar jeans, ouvir rock’n’roll, comprar seus carros e fumar seus cigarros, se os filmes não estivessem nos aplicando, insistindo em que é isso o que deve ser feito?
Como iríamos nos convencer de que o modo de vida dos americanos, suas ideias sobre a vida e o mundo são o que de melhor existe para praticarmos, se tudo isso não estivesse explícito, com excelentes resultados, em seus filmes de cinema ou em suas séries de televisão? É este, hoje, o soft power de toda nação que se preza, mais prático e poderoso que a força militar. É disso que estaremos abrindo mão, se deixarmos o audiovisual brasileiro vivendo na zona cinza em que vive hoje, sem nada que seja capaz de fortalecê-lo.
Assim como Hollywood nunca foi uma experiência incontornável para o cinema americano, também nós podemos e devemos alterar constantemente o nosso sistema, sempre que necessário, para podermos acompanhar a evolução econômica e cultural de um país agitado, nesses dois universos, como é o nosso.
Quando alguns burocratas desejaram criar, no Brasil, o que chamaram de Ancinave, um instrumento de total concentração de poder e decisão no cinema, muitos cineastas se manifestaram contra, acabando por impedir o absurdo autocrático. Não podemos permitir agora que o governo decida que filmes devemos fazer ou não. O artigo 5º de nossa Constituição recusa essa ingerência, quando reza explicitamente, no inciso IV, que “é livre a manifestação do pensamento”, e, no inciso IX, que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”.
Se o presidente deseja levar a Ancine para Brasília, que o faça. Executivo, Legislativo e Judiciário, os três Poderes da nação, já se encontram lá há muito tempo, não tem por que o cinema não ir também. Se o presidente deseja fatiar a agência em vários pedaços, mandando o Conselho Superior de Cinema para a Casa Civil, o financiamento de filmes para um ministério e a regulação do mercado para outro, que o faça. Essa, aliás, era a ideia original de nosso projeto de Ancine, eliminada por conveniências duvidosas.
Mas promover censura prévia, dizer o que podemos e não podemos filmar, isso não. Numa democracia de verdade, nenhum governo, seja ele qual for, tem o direito de controlar nossa imaginação. Nem de orientar nossos filmes. E o presidente jurou respeitar e ser fiel à nossa Constituição de 1988. Inclusive a seu artigo 5º.