O que os bolsonaristas estão chamando de “ativismo judicial” descontrolado nada mais é do que a defesa de uma política sanitária que nos permita ter vacinas mais rapidamente. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, acolhendo um pedido do partido político Rede, estendeu a validade de medidas de combate à pandemia, cujo prazo terminaria hoje, 31 de dezembro.
Com a aprovação, no Reino Unido, da vacina da AstraZeneca/Oxford, que já estamos fabricando aqui na Fiocruz, o governo, que apostou nesse imunizante, poderia iniciar imediatamente a vacinação a nível nacional. Claro que temos um problema a mais, ainda não temos seringas nem agulhas. Para infelicidade de Bolsonaro, o governador João Doria foi precavido e já comprou seringas e agulhas suficientes para vacinar a população do estado.
Como a quantidade de doses ainda será pequena, o sistema que os ingleses adotarão pode ser uma solução inicial: dar a todos a primeira dose, e só a partir da maior produção, começar a vacinação com a segunda dose. Seria um início emergencial para um problema que se transformou em calamidade pública, embora o presidente Bolsonaro e seus mais próximos assessores não levem em conta suas responsabilidades.
Nas festas de fim de ano no litoral paulista, Bolsonaro, como de hábito, não está usando máscara, e provoca aglomeração. O governo, no entanto, confirmando sua incapacidade de atuação, estava disposto a deixar passar o prazo, o que atrasaria muito a vacinação já atrasada no país. O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, também já havia se antecipado à previsível lassidão do governo, autorizando a compra de vacinas já aprovadas em outras agências internacionais, dentro do espírito da lei que agora o STF prorrogou em boa hora.
A atitude particularmente perversa do presidente Bolsonaro, que ganha prêmios internacionais por seus atos ligados à corrupção, e se tornou motivo de piadas pelo mundo, revelou-se mais uma vez no comentário que fez sobre a aprovação do aborto na Argentina: “Lamento profundamente pelas vidas das crianças argentinas”.
Não se ouviu, a não ser superficial e tardiamente, palavras de pesar do presidente pelos quase 200 mil mortos no Brasil, inclusive crianças, pela incúria do governo no combate à COVID-19, mas Bolsonaro é capaz de, por motivação político-religiosa, se intrometer nas decisões do país vizinho. Barbárie, como classificou o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, é defender a tortura.
A legalização do aborto até a 14º semana de gravidez, como aprovado agora na Argentina, pode ser considerada uma política de saúde pública e um avanço no direito das mulheres pois, segundo a Organização Mundial da Saúde, só um em cada quatro abortos feitos na América Latina ocorre de maneira segura. Claro que é assunto delicado, e que comporta várias visões de mundo, mas o fanatismo religioso não pode estar à frente da emancipação dos cidadãos.
O que aconteceu recentemente entre nós, quando uma criança de dez anos, abusada seguidamente pelo tio, teve que chegar ao hospital escondida na mala de um carro para poder fazer o aborto legal, não é aceitável. Os fanáticos que se postaram à frente do hospital tentando impedir a realização da cirurgia autorizada pela Justiça tiveram o incentivo de bolsonaristas seguidores da ministra Damares, cujos funcionários foram acusados de vazar a informação de onde seria feita a operação, o que levou os fanáticos religiosos a fazerem suas manifestações, com ataques morais e até físicos contra os médicos envolvidos na operação.
Esse mesmo fanatismo faz com que o presidente Jair Bolsonaro insinue que quem tomar vacina contra a COVID-19 pode virar jacaré. Nas redes sociais, há até mesmo loucuras como a afirmação que a vacina interferirá no DNA das pessoas. Todas essas aberrações e o fanatismo religioso acontecem não apenas no Brasil, mas em várias partes do mundo. O que não acontece é um presidente da República dar vazão à divulgação delas.
Que 2021 nos seja mais leve, caros leitores. Até lá.