RIO DE JANEIRO - Na primeira legislatura após a queda do Estado Novo, um deputado federal foi cassado por seus pares por quebra do decoro parlamentar. Ele não recebia mensalão, não respondia a nenhuma CPI, mas foi julgado incompatível com a austeridade que se cobrava de um representante do povo, depois de anos da ditadura Vargas.
Simplesmente deixou-se fotografar de cueca para uma revista ilustrada. O fotógrafo queria que ele vestisse uma casaca, não precisava vestir a calça, ele daria um corte no foco, só pegaria a parte superior do deputado. Publicada de alto a baixo em 700 mil exemplares de "O Cruzeiro", a foto foi um escândalo.
O deputado (Barreto Pinto) tinha humor. Esperneou o que pôde, mas se conformou. Tornou-se produtor teatral e encenou uma revista na Praça Tiradentes com o título "O mundo em cuecas". Foi um sucesso.
Anos depois, a mesma revista publicou uma foto de JK num dos banheiros do palácio Laranjeiras, fazendo a barba matinal. No primeiro plano, o presidente com o rosto ensaboado. Ao fundo, o vaso sanitário, daqueles antigos, "made in England". A oposição da época, liderada pela UDN, exigia um impeachment, alegando quebra do decoro que se espera de um presidente da República. Muita discussão nas duas Casas do Congresso, os jornais tomando posição, editoriais apocalípticos, onde estávamos, onde iríamos parar? O Brasil foi declarado à beira do abismo.
Passam os anos. O conceito de decoro é vago, sujeito às circunstâncias do tempo e do modo. Continua sendo um dos motivos previstos pela Constituição para a cassação de um mandato popular. Os dicionários o definem mas a Lei Maior esqueceu-se de explicar o que seja "decoro", na suposição de que todos sabem do que se trata.
Folha de S. Paulo (SP) 12/6/2007