A história consiste, entre outras coisas, numa seqüência de prazos. Prazos que alguns países aproveitam, e outros perdem. Assim sucedeu com o prazo que se abriu, no Renascimento, com a revolução mercantil e um primeiro impulso de modernização, que os países da Europa Ocidental souberam utilizar, e que foi perdido pelos países orientais. Assim ocorreu com a Revolução Industrial, de que a América Latina e -mais uma vez- os países orientais não souberam se valer.
O Brasil está na iminência de perder o prazo para se alinhar com os países emergentes: China, Índia e Coréia do Sul. Enquanto a China vem mantendo, no curso dos últimos 30 anos, uma extraordinária taxa anual de crescimento econômico -da ordem de 10%, o que a transferiu do rol de um dos países mais atrasados para a quinta economia do mundo -, a Índia, democrática e com mais de um bilhão de habitantes, sustenta taxas de crescimento da ordem de 6%, e a Coréia do Sul, de mais atrasada, se tornou mais adiantada que o Brasil. Este permaneceu estagnado no curso dos últimos 25 anos, com pífias taxas médias de crescimento da ordem de 2%. A estagnação foi mantida pelo presidente Lula em seu primeiro mandato.
O que pensar relativamente ao período presidencial que se iniciará em 2007?
O Brasil, em geral, e nossa classe política, em particular, não estão revelando nenhuma consciência do terrível dilema com que se defronta o país: recuperar, enquanto ainda pode fazê-lo, significativas taxas de crescimento ou mergulhar num processo de declínio conducente a uma prolongada decadência.
O perfil do processo eleitoral que se está delineando não tem nada a ver com as urgências e premências do país. O que ora está em jogo é uma pura e simples disputa do poder. Um poder que Lula quer preservar, a despeito de ter sido incapaz de dinamizar a economia do país, em seu primeiro mandato, e de propor como recuperá-la, num segundo, e um poder de que o PSDB se viu despojado nas eleições de 2002 e que aspira reconquistar, sem indicação de ter renunciado ao esterilizante neoliberalismo econômico praticado, embora o denegando, pelo governo Cardoso.
Se o processo político persistir no seu atual curso, vamos ter, seja quem vier a ser eleito, mais um quadriênio perdido. Com isso, o Brasil perderia a primeira década do novo século, tornando extremamente difícil uma recuperação. Não se trata apenas de uma alarmante perda de tempo na corrida da história. Trata-se do fato de que gravíssimos fenômenos de deterioração social estão levando os centros civilizados do país a naufragar no oceano de primitivismo, ignorância e miséria que os circunda. O Brasil segue, aceleradamente, no rumo de se converter num gigantesco Haiti.
Ante esse temível quadro de uma decadência que se está tornando iminente, o Brasil dispõe, não obstante, de condições para uma pronta recuperação.
Não se trata apenas -embora isto seja extremamente relevante- do fato de que o país tem uma importante base técnico-industrial e agropecuária e dispõe, dentre os 180 milhões de habitantes, de significativa minoria de alta capacitação. Trata-se, num momento histórico que requer do seu dirigente um grande carisma social, do fato de que o Brasil tem, no presidente Lula, esse líder carismático do qual necessita, dotado de grande inteligência e boas qualidades humanas. Trata-se, também, do fato de que possuímos satisfatória competência técnico-gerencial, lamentavelmente escassa no PT, mas disponível no PSDB e fora de quadros partidários.
Nada é, assim, mais lamentável do ponto de vista do interesse da própria sobrevivência do Brasil do que o fato - a despeito de amplas convergências pragmáticas- de pura disputa do poder antagonizar o PSDB e Lula.
O primeiro mandato de Lula foi perdido, não obstante as qualidades do presidente, porque suas reconhecidas deficiências gerenciais não encontraram conveniente compensação nos quadros políticos do PT. O extraordinário poder carismático de Lula não o assiste no plano administrativo, no qual nada consegue fazer se não contar com um bom primeiro-ministro, mas lhe assegura a mais ampla projeção internacional e esse imprescindível apoio das grandes massas, inafetado pelas recentes demonstrações de corrupção e pelo continuado marasmo econômico do país, e que nenhum tecnocrata poderá alcançar.
Está na hora de se proceder a uma grande revisão do quadro político brasileiro. É urgente e indispensável que se retome o projeto nacional de consenso, que foi competentemente preparado, em 2002, pelo então denominado Comitê Parlamentar de Consenso. É indispensável que se ajuste um entendimento entre o carisma de Lula e os setores competentes do país, de sorte que o governo do futuro quadriênio disponha da capacidade mobilizatória de Lula e da competência do PSDB.
Lula, presidente, Serra, primeiro-ministro, seria um ideal que ora parece inatingível. Mas que aponta, em suas linhas gerais, na direção de uma possível otimização do futuro governo.
Erradicar a miséria, incorporar urgentemente os milhões de marginais metropolitanos a níveis aceitáveis de cidadania brasileira e retomar taxas anuais de crescimento superiores a 6% é o elenco de medidas que o povo brasileiro deve exigir de sua classe política. Depende da conjugação de carisma social com competência técnica.
Folha de São Paulo (São Paulo) 19/3/2006