Há um tema recorrente em várias lendas: o do personagem que dorme por muito tempo e, ao acordar, não reconhece mais nada. No Brasil de hoje, a impressão por vezes é outra. O retrocesso é de tal monta que por vezes dá a sensação de que estamos todos de volta para o passado — mais remoto ou mais próximo, segundo o caso.
“Avante, soldados: para trás” é o título de um romance de Deonísio da Silva sobre o episódio histórico da Retirada da Laguna. Impossível não evocar essa ordem de recuo agora. O general Antonio Mourão fez palestra em Brasília e afirmou que pode haver intervenção militar se o Judiciário não solucionar o problema político do país. O general Augusto Heleno declarou apoio. Mas o comandante do exército, general Eduardo Villas Bôas, rejeitou essa hipótese em “Conversa com Bial”. Frisou, porém, que a Constituição dá às Forças Armadas o poder de intervir legitimamente. Tudo bem que não dar maior importância diminui a repercussão. Mas lembrar que as Forças Armadas têm o mandato de fazer intervenção, na iminência de uma situação de caos, não ajuda muito. Em que década estamos?
Em outro campo, apesar de réu em vários processos, Lula aparece como primeiro colocado em pesquisa encomendada pela Confederação Nacional do Trabalho. Lidera intenções de votos em todos os cenários. No primeiro turno, a menção espontânea a seu nome é dez vezes maior que a de Marina, por exemplo — e o dobro de Bolsonaro que, no entanto, cresce no papel de anti-Lula. Em que ano estamos?
Na área comportamental, o moralismo hipócrita campeia. Comissão especial da Câmara dos Deputados vota mudança na Constituição para proibir qualquer tipo de aborto, mesmo os que hoje são legalmente permitidos. Exposição no Santander do Rio Grande do Sul desencadeia série de trapalhadas e lambanças em meio a onda moralista. Por um lado, recebia dinheiro público e, como contrapartida, organizou amplo programa de visitas escolares. Foi acusada de incitação à pedofilia e incentivo à zoofilia. Por outro lado, o banco mais uma vez tratou de se mostrar dócil às pressões — como já fizera no caso das críticas de Lula a uma analista financeira que orientava investimentos, logo demitida. Além disso, houve o cancelamento de uma peça teatral em Jundiaí por ferir suscetibilidades. E uma apreensão de quadros pela polícia a mando de deputados. E evangélicos seguem apedrejando praticantes de cultos afro, invadem terreiros, fazem quebra-quebra, apontam armas para mães e pais de santo, demonizam e perseguem fiéis de outras crenças. E a prefeitura do Rio quer saber a religião de quem se inscreve em academias de ginástica. E o deputado Pastor Franklin quer que rádios públicas sejam obrigadas a tocar músicas religiosas, sob pena de suspensão da concessão. Com que legitimidade?
De repente, no meio da tarde, a televisão mostra o STF discutindo se ensino religioso em escola pública deve ser confessional ou genérico. Como assim? Que jabuti é esse? Escola pública não tinha de ser leiga? Não foi essa uma conquista do país há mais de meio século? Como ficou obrigatório ter aulas de religião pagas com o dinheiro de todos? Mudaram a Constituição, e o país dormia e nem reparou? Em que século estamos?
Mais de metade das cadernetas de vacinação das crianças não está em dia. Abandonou-se essa pré-condição para receber a Bolsa Família, ninguém mais liga. Mas é grave: trata-se da saúde infantil. Desde quando os programas sociais se acham no direito de dispensar a exigência de contrapartidas? Era uma avanço da sociedade.
Gangues dominam o Rio com tiroteios e intimidação ou se apossam do Estado pela força, passando por cima da lei. Concretiza-se o risco apontado pelo então secretário Beltrame, quando insistia em frisar que UPP era só o início mas não adiantaria retomar o território ao crime se o poder público não entrasse a seguir, garantindo aos moradores os serviços essenciais a que todos têm igualmente direito. O retrocesso faz parte da nossa ojeriza a diminuir desigualdade. E dá nesse Estado paralelo a serviço do crime. Em que milênio estamos?
No meio disso, a proposta do advogado do bandido Nem é chamar o “reeducando” para controlar o crime de perto. Ou seja, transferir para o Rio o criminoso, atualmente em presídio de segurança máxima em Rondônia, e lhe passar a tarefa de reduzir a criminalidade no estado. Esse advogado até o ano passado era presidente estadual de um partido em SP.
No STF, o neoministro Alexandre de Moraes pediu vistas e há meses senta em cima da proposta de limitação do foro privilegiado, garantindo que nada muda nessa área e impedindo que a Justiça siga seu rumo.
A combinação de moralismo, conservadorismo político, ignorância, corrupção, negação dos fatos e tantos outros males nos joga neste pesadelo desesperador em que vivemos. Não precisa terremoto nem furacão para causar estragos. Basta nosso próprio retrocesso. A um arquipélago de obscurantismo num oceano de barbárie. De volta a um passado inaceitável.