NA SEMANA PASSADA, COMENTEI sobre meus livros sublinhados. Na verdade, não tenho muitos livros: há alguns anos, fiz certas escolhas na vida, guiado pela idéia de procurar ter um máximo de qualidade, com o mínimo de coisas. Não quer dizer que tenha optado por uma vida monástica; muito pelo contrário, quando não somos obrigados a possuir uma infinidade de objetos, temos uma liberdade imensa. Alguns de meus amigos (e amigas) reclamam que, por causa do excesso de roupas, perdem horas de suas vidas tentando escolher o que vestir. Como resumi meu guarda-roupa a um “preto básico”, não preciso enfrentar este problema.
Mas não estou aqui para falar de moda, e sim de livros. Para voltar ao essencial, decidi manter apenas 400 livros em minha biblioteca - alguns por razões sentimentais, outros porque estou sempre relendo. Tal decisão foi tomada por vários motivos, e um deles é a tristeza de ver como bibliotecas acumuladas cuidadosamente durante a vida são depois vendidas a peso, sem qualquer respeito. Outra razão: por que manter todos estes volumes em casa? Para mostrar aos amigos que sou culto? Para enfeitar a parede? Os livros que comprei serão infinitamente mais úteis em uma biblioteca pública do que em minha casa.
Antigamente, poderia dizer: preciso deles porque vou consulta-los. Mas hoje em dia, quando há necessidade de qualquer informação, conecto o computador, digito uma palavra-chave e diante de mim aparece tudo o que preciso. Ali está a internet, a maior biblioteca do planeta.
Claro que continuo comprando livros - não existe meio eletrônico que consiga substitui-los. Mas assim que termino, deixo que ele viaje, dou para alguém, ou entrego em uma biblioteca pública. Minha intenção não é salvar florestas ou ser generoso: apenas creio que um livro tem um percurso próprio, e não pode ser condenado a ficar imóvel em uma estante.
Sendo escritor, e vivendo de direitos autorais, posso estar advogando contra mim mesmo - afinal, quanto mais livros comprassem, mais dinheiro ganharia. Entretanto, seria injusto com o leitor, principalmente em países onde grande parte dos programas governamentais para bibliotecas é feito sem o critério básico da escolha séria: o prazer com a qualidade do texto.
Deixemos, pois, nossos livros viajarem, serem tocados por outras mãos e desfrutados por olhos alheios. No momento em que escrevo esta coluna, lembro-me vagamente de um poema de Jorge Luis Borges que fala dos livros que jamais tornarão a ser abertos.
Onde estou agora? Em uma pequena cidade dos Pirineus, na França, sentado em um café, aproveitando o ar condicionado, já que a temperatura lá fora está insuportável. Por acaso, tenho a coleção completa de Borges em minha casa, a alguns quilômetros do local onde escrevo - é um escritor que estou constantemente relendo. Mas por que não fazer o teste?
Atravesso a rua. Caminho até um outro café, equipado com computadores. Cumprimento o dono, peço uma água mineral geladíssima, abro a página de um mecanismo de busca e digito algumas palavras de um único verso e o nome do autor. Em menos de dois minutos estou com a poesia completa diante de mim:
“Há uma linha de Verlaine que nunca mais me lembrarei.
Há um espelho que já me viu pela última vez.
Há uma porta fechada até o final dos tempos.
Entre os livros de minha biblioteca
Há algum que já não tornarei a abrir.”
Na verdade, muitos dos livros que doei, tenho a impressão que jamais tornarei a abri-los - porque sempre é publicado algo novo, interessante, e eu adoro ler. Acho ótimo que as pessoas tenham bibliotecas, mas também acho ótimo quando, em uma tarde de autógrafos, encontro leitores com exemplares usadíssimos, que foram emprestados dezenas de vezes: isso significa que aquele livro viajou, como a mente do seu autor viajava, enquanto o escrevia.
O Globo (Rio de Janeiro) 10/10/2004