A Unesco recebe segunda-feira próxima o presidente Khatami, em inédita manifestação quanto ao diálogo das civilizações, para aprofundar o entendimento entre o Ocidente e o Islão, ainda à época do espanto com a revolução de Khomeyni. Reforçava-se, então, a aura do novo governante por ter chegado ao poder, no bojo de uma eleição democrática, no seio da República islâmica, a demonstrar a flexibilidade crescente dos seus rumos políticos. A rapidez e o estrépito da queda do Xá punham à nu o atentado profundo, atingindo o inconsciente social de todo um povo, representado pelas formas do progresso e dependência ocidental impostos em verdadeiro terremoto ao país dos Aiatolás.
Na verdade, o pai do monarca deposto era contemporâneo de Ataturk que, na Turquia, realizava a experiência única, de compensar a modernização, com o desenvolvimento de um espírito nacionalista, ao reforçar a identidade de seu povo com o talhe, aos seus olhos, de um novo Estado, arrancado do Império otomano. O cuidado identitário de Kemal permitiu-lhe chegar a mudanças impensáveis à época, da troca do alfabeto até a definição do laicismo para as instituições do poder político que emergia. Era a posição contrária à dos potentados iranianos que se expuseram a uma verdadeira terraplanagem histórica para alcançar um padrão de desenvolvimento ocidental a qualquer custo. A República islâmica que os derrubou se tornaria absolutamente religiosa, tanto o fundo básico do Islão se esvaziara no regime anterior, sem qualquer antídoto ou compensação.
A reação contra o segundo Xá, que se transformara pelos seus luxos e dispêndios, num próprio epígono do consumismo ostentatório, como evidenciara nas festas lendárias do segundo milenário de Persepolis, levou à queda peremptória, começada pela pregação dos rádios de bolso ligados à pregação do Imã Khomeyni.
O levante fez-se irrupção generalizada, juntando à invocação das sutras do Corão ao propósito deste reencontro com a autenticidade da alma do país, no mais rigoroso integrismo islâmico. O novo Estado se assentaria sobre a própria lei da shariah, tanto o credo islâmico é necessariamente teocrático, e implica, ao lado dos saberes de salvação, todo um preciso e amplo preceito de ordem pública. Das suas punições de morte, de amputação de membros, ou chicotadas, até os deveres cívicos da hospitalidade e da convivência histórica com as religiões do livro, a precederem o Profeta nos credos judaico e cristão.
O apelo de Khatami na busca do verdadeiro recado do que se pensava, à época, fosse uma iminente reação em cadeia, de novas Repúblicas islâmicas, somava-se à interrogação sobre o reflexo da Shariah no quadro geral dos direitos humanos contemporâneos e da ordem política dos Estados ocidentais. Mesmo porque, às vésperas do khomeynismo, Teerã fora a sede e o marco inicial deste esforço de tomada de consciência internacional desses mesmos direitos humanos, sob a égide das Nações Unidas.
O "diálogo das civilizações" mal começava, ao sobrevirem o 11 de setembro e, com a queda das torres, o mundo do terrorismo e a emergente "civilização do medo". Até onde a irracionalidade terrorista do Al-Qaeda transformara-se no ponto de enlouquecimento de um mal-estar internacional em todas essas orlas do Ocidente? E tal, diante da troca, em todo o último século, pelo deslumbre do petrecho tecnológico, da autenticidade mais funda que o Corão imprimiria a esta faixa histórica intensamente religiosa.
A proposta de Khatami preveniria a reação ao inaudito da agressão de Bin Laden, passada a uma suspeita generalizada ao próprio mundo islâmico. O apelo do Chefe de Estado de Teerã ganhou uma espécie de premonição do que adviria, com a era bushiana, ao mundo das guerras de preempção, do conflito sem fim e da implosão de qualquer efetiva prosperidade de uma cultura da paz. No quadro desse fundamentalismo defensivo, o mundo se definiria para o Salão Oval num escrínio, não apenas de nações amigas ou inimigas, mas da identificação de "eixos do mal" votados a todas as formas de ofensiva americana, a prazo médio e longo, e entre eles, de imediato, tendo como alvo o Irã.
O Khatami que agora deixa o poder no rigoroso cumprimento do seu mandato, das regras do jogo democrático quer, no seu próprio país, dedicar-se ao grande debate que suscitou. A consciência mundial diante desta mudança qualitativa de história que implicou o 11 de setembro lembrar-se-á, sempre, de que veio do Irã a iniciativa para o desarme das cabeças e a garantia da amplitude do palco para a sua reflexão. É toda essa circunstância que se relembrará agora em Paris, ao fim de um mandato político que se transforma agora num cometimento histórico. Em Teerã, o presidente constituirá a Fundação para o verdadeiro desarme dos espíritos, diante das assombrações do "eixo do mal", e da transformação em álibis hegemônicos, da posse de engenhos nucleares ou, sobretudo, da permanência da ocupação do Oriente Médio pelos Estados Unidos, como imperativo da estratégia da cruzada antiterrorista.
O Khatami que se divisará na Unesco tem outra e possível projeção história do que a de Gorbatchev após a extraordinária deflagração da glasnost, também em marco histórico fundador. O russo, consagrado como figura exponencial da última década do século passado, viu-se, não obstante, no constrangimento de se tornar num exilado voluntário, ao criar a coligação internacional da Cruz Verde - em contraponto à Cruz Vermelha - abrigada em Genebra, capital etérea de todas as utopias, Khatami fica em casa. E justamente de dentro da ordem política de seu país que não se fecha. Nem se identifica à torna de qualquer fundamentalismo, a cuja descompressão dedicou a vida, fazendo da força eleitoral de sua audiência universitária o segredo do avanço da democracia frente ao autoritarismo revolucionário.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 01/04/2005