Afirmam os compêndios e os moralistas que a cabeça é a parte nobre do corpo humano. Tenho algumas dúvidas olhando minha própria cabeça e principalmente olhando certas cabeças que por aí circulam.
Não, não me digam que é com a cabeça que a gente pensa. Eu, pelo menos, já não consigo pensar com ela. Escrevo, sim, mas na base dos dedos. Estou oco, vazio por dentro e por fora, mas basta sentar em frente ao computador, colocar as mãos sobre o teclado e as frases vão saindo.
Direis: "Ora, ouvir estrela", ou: "Mas escrever o que você escreve não é vantagem, não precisa cabeça, bastam os pés".
E eu vos respondo: os pés são também mais nobres que a cabeça. Eles nos guiam aos antros do pecado e aos santuários da Graça.
São eles que glorificam a nação com os campeonatos mundiais e são eles que nos auxiliam quando o marido chega da viagem intempestivamente e nos encontra em situação imprópria com a consorte. Bem verdade que se pode apelar para a lábia.
Dizer que a situação não passa de um equívoco, dependendo da eficiência do pecador e da obtusidade do marido, pode dar resultado. Contudo, o mais seguro é apelar para os pés.
Bom, não sou tão inimigo da cabeça assim, reconheço algumas utilidades em sua função. Não houvera cabeça e testa, e onde os traídos grudariam seus chifres? Não houvera cabeça e cabelo, como desgrenharíamos a nossa dor diante da fuga das amadas?
E, finalmente, não houvera cabeça, como ameaçaríamos os circunstantes com o nosso suicídio? "Vou dar um tiro na cabeça!". "Não faça isso, Ananias, pense nas crianças!"
Nunca ninguém ameaçou dar um tiro no peito ou tomar veneno ou despencar-se do 18º andar. Embora seja mais prático o 18º andar, ou a lata de creolina, na hora da ameaça o que nos acode à cabeça é justamente a cabeça e o tiro donde se concluirá com alguma razão: local apropriado para se levar um tiro, a cabeça.
Mas além dos tiros, há os carecas, e se houvera um plebiscito secreto sobre o assunto, de bom grado fariam o governo proibir que usassem as cabeças.
E há, ainda, a vantagem da dor específica que nos livra dos compromissos mais chatos, "Aguenta a mão, Azevedo, hoje não posso, estou com uma baita dor de cabeça".
Muitas vezes a dor é no bolso ou na alma, mas insensivelmente culpamos a cabeça, ela é nossa prestimosa parceira nas coisas sórdidas e inglórias que por aí cometemos.
Minha birra com a cabeça começou no dia em que, na distante escola, soube que havia a cabeça e o cabeça. Achei a coisa meio obscena, mas estava nos livros e eu não podia nada contra a sagrada verdade dos livros. Hoje, escrevo eu meus próprios livros para vingar isso tudo.
Há, assim, a cabeça de pista e o cabeça da quadrilha. A cabeça da porca que entortou no carburador e o cabeça da greve que reivindicou salário maior.
E, além das cabeças, há as cabeçadas e os cabeçudos e se o revisor não tomar cuidado com as palavras que aqui estou escrevendo -eis que um escriba será posto no olho da rua coberto de opróbrio.
Não me venham com a liturgia cristã. Sei, os santos óleos da Crisma, do batismo e da ordem são passados na cabeça. Mas há também o final unguento da extrema-unção que é passado até na sola dos pés.
Não me venham também com as pornografias que é na cabeça que se concebem e se aprimoram todos os delitos e ignomínias.
Por tudo isso, alvíssaras ao dr. Guilhotin! Revoltado contra o tradicional processo da forca, que matava o camarada, mas respeitava a cabeça, inventou ele aquele útil e eficaz aparelho que separa a cabeça das tripas e do resto.
"Dar cabeçadas por aí" é metáfora de largo uso e significa que, tal como os frades espanhóis dos romances de capa-e-espada, somos capazes das piores coisas. "Cabeça que não regula o corpo é que paga" -não chega a ser metáfora, mas uma verdade de fácil comprovação.
Finalmente, é a mercadoria mais solicitada quando nossos adversários não nos pedem o tronco e os membros, não nos pedem nem dinheiro nem servidão, pedem apenas a cabeça. E foi assim que João Batista, a pedido de Salomé, terminou com a dele numa bandeja.
Folha de São Paulo, 7/1/2011