O lugar-comum garante que somente os burros se admiram de alguma coisa. Devo ser burro o bastante para sempre me admirar de tudo, e cada vez mais. Não diante dos palácios e castelos, que não os admiro como a tradição afirma que os burros o fazem, certamente por falta do que admirar nos homens e nas demais coisas do homem.
Ficando apenas nos burros e nos homens, sempre admirei aquele ditado atribuído aos latinos: um burro coça outro. No vernáculo romano: "asinus asinum fricat".
Não entro no mérito da metáfora em si, mas na paciência, tempo e perspicácia com que os homens observaram o comportamento dos burros e verificaram que eles se coçam mutuamente.
Acredito que, em tempos idos, os homens não tinham muito o que fazer, daí que podiam olhar os burros com mais profundidade. Não dispunham de jornais, rádios, cinema, TVs, internet -até mesmo os livros eram raros, e poucos sabiam ler. Mas sabiam observar e tinham bastante tempo para isso.
Para falar a verdade, mesmo dispondo de algum tempo ao longo dos anos, produto urbano que fui e continuo sendo, nunca tive intimidades pastorais, daí que nunca pude observar com perseverança e isenção o comportamento dos animais - vacas, ovelhas, coelhos, cobras, lebres, cavalos e burros. Destes últimos, os que conheci foram os da limpeza pública, que puxavam as carroças de lixo no Rio antigo. Machado de Assis foi além, no tempo dele os burros também puxavam os bondes.
Mas voltemos aos latinos. Descobriram que os burros se coçam uns aos outros, sendo, portanto, mais solidários entre si do que os homens, que só se coçam em sentido figurado e quando são comprovadamente burros o suficiente para se esfregarem.
Não sei por que estou expressando minha admiração pelos burros. Talvez seja um truque ou um pretexto para admirar a mim mesmo.
Folha de São Paulo (São Paulo) 26/1/2006