Deus é testemunha -gosto de invocar o Todo Poderoso, no qual às vezes creio, às vezes não, de acordo com o tempo, o modo e a circunstância. Sobretudo quando estou mentindo, o que não é o caso, principalmente agora, quando a verdade não vale e, se valesse, dava na mesma. A invocação é para afirmar que não aprecio solenidades, sejam quais forem. Houve época em que havia solenidade em tudo, principalmente nos enterros, quando Estado e Igreja não haviam se separado pelos ideais e costumes republicanos.
Uma das melhores cenas de "Dom Casmurro" é quando Bentinho, ainda infante, está com o agregado José Dias num ônibus (daquela época) e há a notícia de que vai sair o Santíssimo da igreja de Santo Antônio dos Pobres para atender a um moribundo. José Dias ordena ao recebedor que pare o veículo, ele e Bentinho saltam e vão à sacristia habilitar-se ao privilégio de segurar uma das varas do pálio que cobriria "o vigário e o sacramento". Surge de repente o Pádua, "esbaforido", nada menos do que o pai de Capitu, disputando a mesma honra.
Há uma espécie de empurra-empurra entre os três. Vendo-se perdido, José Dias reclama o direito para Bentinho, um futuro seminarista. Pádua conforma-se em pegar uma das tochas, ficando "pálido" como as próprias tochas. E vão os três pelas ruas levando a hóstia sagrada para o cristão que morria, obrigando os transeuntes a se ajoelharem -era um pretexto para imaginar que todos se ajoelhavam por causa deles.
Outros tempos, diria o próprio Machado de Assis. Havia solenidade nos enterros. Quando Rio Branco morreu, o Rio branco, negro e mestiço parou e se ajoelhou na avenida homônima para ver passar o coche suntuoso do barão, em cuja cadeira às vezes me sento, na Academia, embora a minha cadeira seja de outro.
Na recente obra de Ronaldo Costa Couto sobre o industrial Francisco Matarazzo, há uma foto em página dupla do enterro do conde, coisa impressionante. São Paulo, que não pode parar, parou para homenagear o falecido, pompas e circunstâncias que jamais se repetiram.
Havia enterros de primeira, de segunda e de terceira classes, outros sem classe alguma, destinados aos indigentes. Economizava-se em vida para garantir depois de morto um enterro ao menos de segunda classe, cobria-se de opróbrio posterior e eterno a família que se contentava com um de terceira. Ainda peguei este tempo e, fosse qual fosse a classe, pelo trajeto os homens se descobriam e as mulheres se persignavam, nos botequins todos se levantavam e iam para as calçadas honrar o morto e verificar como se portavam os vivos.
Não sou de freqüentar enterros, costumo cortar relações com os amigos que morrem, considero-me insultado por eles: radicalizo, corto as relações. Apesar disso, há alguns que não posso evitar. Num deles, durante o velório, encontrei um clima de convescote, de noite de autógrafos e vernissage, todos falavam alto, riam, contavam anedotas, dava-se em cima das mulheres acompanhadas ou não.
Findo o velório, nem se disputava a honra de segurar as alças do caixão, deixavam a missão para os funcionários da capela. Mas já houve tempo em que era de proveito segurar as alças de um caixão famoso. Conheci um personagem que levava sempre no bolso uma alça avulsa -em havendo oportunidade, ia ele com sua alça suplementar, aproximava-se do caixão, grudava-lhe a alça e saía nas fotos. Um caixão tinha, e creio que ainda tem, em sua origem e finalidade, apenas seis alças. Com a do sujeito, ficava com sete.
Hoje não há préstito nem coche. Surge uma Kombi que nem é preta, combalida, caindo aos pedaços. Empurram o falecido para dentro, a Kombi mistura-se ao tráfego de todos os dias e horas, pára nos sinais vermelhos que nem os tanques de combate paravam em dias de golpe de Estado aqui no Rio.
Há em São Paulo, aqui já citado, um cemitério da Consolação. No Rio, os cemitérios são desconsolados, sujos, de péssimo gosto e nenhuma dignidade. Os coveiros não escondem a desafiadora má vontade, olham os acompanhantes com certa voracidade, querendo gorjetas ou enterrar a todos para aproveitar a oportunidade, livrando-se de futuro trabalho para eles e queimando etapas para aqueles que, mais cedo ou mais tarde, também ali ficarão na problemática espera da ressurreição dos mortos.
Finalmente os vivos consideram-se salvos, missão cumprida, onde quer que esteja, o sepultado constata os que foram realmente seus amigos, surpreende-se com a presença de uns e com a ausência de outros -que são a maioria.
Santo Agostinho dizia que não se deve temer a morte, mas o seu espetáculo. Marco Antônio aproveitou o funeral de César para o seu discurso, dizendo que os inimigos do imperador eram todos homens honrados, "all honourable men". Nesta crônica sombria, falei de um barão e de um conde, falei de um imperador romano, citei Santo Agostinho, lembrei Dom Casmurro e o Pádua, pai de Capitu e seu futuro sogro. Falei também de golpes de Estado e de golpes do destino que não podemos evitar. E invoquei Deus, testemunha da miséria humana.
Folha de São Paulo (São Paulo) 07/10/2005