O meu convívio com Mário Mendonça nasceu nas sessões do Conselho Cultural da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro. Presença sempre constante, nas reuniões presididas por Sérgio Pereira da Silva, Mário defendeu durante muito tempo a necessidade de se construir, no Rio, um Museu de Arte Sacra. Se não pudesse ser semelhante ao da Bahia, que pelo menos tivesse o espaço e a visibilidade necessários para abrigar milhares de preciosidades, algumas das quais colocadas em risco por motivo de segurança precária.
Além de grandes quadros, em que a inspiração religiosa é predominante, Mário é um estudioso da secular arte sacra, o que não o impediu de voltar a sua atenção para o extraordinário D.Quixote de la Mancha, obra-prima de Miguel de Cervantes. Segundo ele confessou, ficou tocado, comovido e impressionado. "Nunca li um livro tão importante escrito por mãos humanas."
Sobre o Quixote, com suas milhares de edições, quase tudo se escreveu, na literatura universal. Vieram à luz também os seus desdobramentos, como a peça teatral "O homem de la Mancha", que primeiro assistimos em Nova Iorque, para depois vibrar com a sua apresentação no Teatro Adolpho Bloch, no Rio de Janeiro, na genial interpretação de Paulo Autran (com Grande Otelo no papel de Sancho Pança). Lembro que fui ao espetáculo oito vezes. E chorei em todas elas.
A cena final, da morte do Fidalgo, é de uma força dramática raramente vista. Acompanhando aquela emoção toda, a música "Sonho Impossível", com tradução de Chico Buarque de Holanda, depois popularizada pela cantora Maria Betânia. Mistura forte de mais, com inevitável repercussão nas nossas coronárias. É toda essa magia que cerca a obra-prima universal.
Mário Mendonça ficou também dominado por esse sentimento. Pintando em Tiradentes, compôs a coleção D.Quixote, exposta pela primeira vez na Espanha, onde se disse que, como pintor, era também poeta, visionário e mortal, nos desenhos do homem alucinado, herói apaixonado, figura central de um dos melhores livros escritos em qualquer época.
É preciso testemunhar que Mário Mendonça reúne, na sua personalidade, não só o talento artístico, mas uma bela e generosa alma. Não é movido por interesses comerciais primários, ao dedicar-se por horas e dias ao que o inspira. No caso, nem pensa vender o patrimônio valorizado pelos magníficos desenhos do homem da triste figura. Teria prazer se pudesse doar os quadros para uma ou várias instituições culturais, com o natural compromisso de garantia da sua conservação, para alcançar a posteridade.
São 400 anos de construção dessa obra-prima. Quantas gerações, em épocas distintas, deliciaram-se com a comovente história desse incorrigível sonhador, amante da sua Dulcinéia e amigo inseparável de Sancho Pança. Aliás, cabe o registro de que este último, considerado por muitos de fraca inteligência, tinha um exemplar bom senso, de que se serviu o Cavaleiro Andante em diversos imomentos da sua agitada trajetória.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 03/07/2005