A história literária de um país tem a sabedoria de contemplar, por igual merecimento, os autores de obra caudalosa e aqueles que, até com um só livro, conquistam a posteridade. Cyro dos Anjos deixou alguns romances de valor comprovado, mas se ele tivesse permanecido apenas n'O amanuense Belmiro, seu lugar no panteão brasileiro estaria plenamente assegurado.
Publicado em 1937, quando se espalhava no Brasil, com justiça, a ficção nordestina, celebrizada por José Lins do Rêgo, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, entre outros, O amanuense Belmiro reatava uma espécie de vínculo com Machado de Assis, nosso insuperável escritor. Comprazia-se Cyro numa linguagem econômica e precisa, com uma psicologia sutil e verdadeira e um desmascaramento delicado e profundo do indivíduo, tudo envolto numa ironia superior, de alguém que, retratando a província, conferia-lhe a dimensão do universo.
Sabe-se que essa vinculação a Machado é contestada, porque Mário de Andrade prefere que, em vez de Cyro, se associe o autor de Dom Casmurro à saudosa Rachel de Queiroz, com seu romance Três Marias. Mineiro de Montes Claros, nascido em outubro de 1906, Cyro não se lisonjeava com o papel de epígono ou de discípulo, num problema que Antônio Cândido resolveu em definitivo com um artigo que se tornou prefácio das edições posteriores do Amanuense.
Escreveu o crítico: ''Falou-se muito em Machado de Assis a propósito de Cyro dos Anjos, insistindo-se sobre o que há de semelhante no estilo e no humorismo de ambos. O que não se falou, porém, foi na diferença radical que existe entre eles: enquanto Machado tinha uma visão que se poderia chamar dramática, no sentido próprio, da vida, Cyro possuía, além dessa, e dando-lhe um cunho muito especial, um maravilhoso sentido poético das coisas e dos homens. O que há de admirável, em seu livro, é o diálogo entre o lírico, que quer se abandonar, e o analista, dotado de humour, que o chama à ordem; ou ao contrário, o analista, querendo dar aos fatos e aos sentimentos um valor quase de pura constatação, e o lírico chamando-o à vida, envolvendo uns e outros em piedosa ternura''.
Editado em 1945, oito anos depois do Amanuense, o segundo romance de Cyro, Abdias, não mereceu a mesma unanimidade crítica, ainda que fosse muito louvado. Álvaro Lins publicou sobre ele um artigo que, alterado, passou a figurar como prefácio das edições posteriores, escrevendo: ''Cyro pertence à família dos escritores de um só livro em vários livros, com obras que se desdobram e se comunicam como se fosse uma só. Isto não é um defeito, e sim uma qualidade e uma espécie de criação literária. Abdias não é a repetição de O amanuense Belmiro, mas um segundo romance que continua o primeiro, embora os personagens tenham outro nome e sejam apresentados em novas situações''.
Abdias representa um progresso, em relação ao Amanuense. Mais orgânico, o novo romance se concentra na análise psicológica dos protagonistas.
Sobre o processo de composição, Cyro registra: ''Divisão destas notas em parágrafos tem muitas vezes fugido à cronologia e, de ordinário, dissocia fatos que, encadeados no tempo, talvez devessem ser alinhados seguidamente no papel, para mais fidelidade da exposição. É que eu me abandono a um fluxo que vem do inconsciente e, à semelhança das correntes marítimas, certamente tem o itinerário determinado por diferenças de densidade e temperatura''.
Trata-se de um procedimento que se aproxima bastante do adotado em obras-primas da ficção moderna.
Montanha, o terceiro romance de Cyro, lançado em 1956, provocou diversas polêmicas, sobretudo por causa das controvérsias a respeito da política mineira nele descrita. Muitos dos seus líderes de então, Benedicto Valladares, Juscelino Kubitschek, Magalhães Pinto, Pedro Aleixo, Israel Pinheiro, Gustavo Capanema, Milton Campos, Bias Fortes, José Bonifácio, José Maria Alkmim e Tancredo Neves estão retratados com pseudônimos e apelidos que os encobrem, mas que são facilmente identificados pelo leitor.
Naqueles tempos difíceis, pode-se facilmente imaginar a enorme repercussão de Montanha, comprovada pelas sucessivas e esgotadas edições.
Seguiu-se no mesmo ano o ensaio A criação literária, uma pesquisa de Cyro no campo da estética, como catedrático de Literatura, que lecionava na Faculdade de Filosofia de Minas, e com uma bibliografia que bem atesta sua erudição: Valéry, Flaubert, Platão, Jacques e Raissa Maritain, Bergson, Croce, Proust, Pirandello e o Sartre de Qu'est-ce que la littérature?.
E ainda teve tempo de escrever dois livros de memórias: A menina do sobrado e Explorações no tempo.
Segundo Afrânio Coutinho, ''a obra de ficção de Cyro Versiani dos Anjos é muito importante, pelo seu aspecto estético, onde se salienta uma linguagem escorreita, algo clássica, quer pelo seu lado de participação social em destaque, quer pela sua face de político oculto. Trabalhando na administração pública, retirou dela a sua matéria-prima a inspirá-lo para escrever os seus romances''.
Foi um bom romancista, ensaísta, memorialista, poeta, jornalista, professor universitário e funcionário público.
Em 1952, Cyro esteve no México e em Lisboa, lecionando Estudos Brasileiros nas universidades locais.
Foi subchefe do Gabinete Civil de JK e redator de vários dos seus discursos; membro do Tribunal de Contas do Distrito Federal e professor na Universidade de Brasília, da qual foi um dos fundadores, ao lado de Oscar Niemeyer, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro; diretor do Ipase, quando estendeu a todo o país a assistência médico-hospitalar, até então restrita ao Rio de Janeiro; e secretário municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo, na administração de Olavo Setúbal.
Cyro dos Anjos elegeu-se em 1969 para a nossa comum cadeira nº 24, na Academia Brasileira de Letras, paraninfada por Júlio Ribeiro, fundada por Garcia Redondo e tendo como antecessores Luís Guimarães Filho e Manuel Bandeira, na qual permaneceu até a sua morte, em 4 de agosto de 1994, quando tive a grande honra de sucedê-lo.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 08/09/2004