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Cursos jurídicos e cidadania

 

Vem-nos agora, com o interesse, aplauso e espanto em todo o Brasil, a iniciativa da OAB de recomendar, ou não, os atuais cursos jurídicos do País. Trata-se de aplicar o dito selo de qualidade, instalando na área universitária a informação ao consumidor como sugerem os incentivos, urbi et orbe, da produtividade capitalista. Não se trata, pois, de definir aprovados e reprovados, como propagou a mídia, qual passagens para o paraíso ou o inferno das nossas faculdades. O martelo da Ordem privilegiou 69 unidades entre 248 casas de ensino. Mas nada foi dito quanto aos critérios do selo. Que bases, que amostragens, que eixos comparativos usou a Ordem, entre as 248 casas de ensino submetidas ao seu olhar e ao seu cutelo?


Em épocas de transparência e da paixão democrática só se reforçaram, em contraste, os veios dos segredos no veredicto, sem que se saiba, nele, do que são certezas, gostos, preconceitos ou bem dizeres da lista. Mesmo porque não se trata de efetiva fiscalização do ensino superior na área jurídica. Essa a temos por competência constitucional expressa do Ministério da Educação. E esse o faz - sabem os educadores - com padrões de seriedade a toda prova, aos olhos de todo mundo, continuamente revistos e, inclusive, entregues a apreciações distintas, seja da Secretaria do Ensino Superior da pasta, seja do Conselho Nacional de Educação.


O primeiro desses órgãos examina, vasculha, vai as casas - coisa que nunca fez a Ordem - discute currículos, grades de ensino, bibliotecas e condições de conforto das instalações. O Conselho, por sua vez, tal como ainda vem de repetir o presidente da Câmara de Ensino Superior, Efrem Maranhão, avalia estes dados à luz da sociedade civil que, pelo pleito de novos cursos, exerce o direito de ensinar, dentro da demanda da comunidade e da dita necessidade social de sua expansão. São razões de decidir distintas do âmbito da profissão de advogado.


Entende-se que à Ordem interessem as reservas de mercado e a natural regulação corporativa da sua expansão. Mas há que atentar que, de saída, uma faculdade de direito não se destina só a advogados, mas a magistrados, procuradores e, também, a vocações dedicadas à vida política e do desenvolvimento da cidadania no País.


Tão importante, na nossa modernização, quanto ao número de inscritos na Ordem, é o contingente de bacharéis presentes às Câmaras de Vereadores, à Assembléias Estaduais e ao Congresso Nacional. Na feitura das leis, na expansão das Ong’s, nas dinâmicas de organizações de classe no avanço, enfim, das redes locais em que cresce o Brasil-cidadão, na fome do ensino superior e são as faculdades de direito interioranas que atendem a lide com as instituições e o trato do Estado.


Alastradas, desdobradas no País, são um degrau da nossa cultura cívica - como reconheceu o Conselho Nacional de Educação - impelida pelo clássico bacharelismo brasileiro como provedor da ascensão das classes médias e de um sistema político saído dos donos do poder do País ainda semicolonial. Este imperativo, que é dado congênito à nossa mobilidade social, precede da alta tecnicalidade que devam revestir os operadores do direito, nos escritórios de advocacia de nossas metrópoles, como pedem as sociedades complexas do nosso tempo e as novas dimensões da globalização. Mas são duas perspectivas, num único curso, os que apreciam a OAB e o Ministério. Se a corporação se pronuncia, e inclusive o MEC a ouve, distintos são os propósitos de uma e outra chancela.


Na linha de fundo do que para muitos, pretende o selo, paira um propósito de eliminação progressiva das escolas não premiadas, consoante a imagem renitente do “excesso” das faculdades de direito no País. É o que implicaria em contra-argumentar-se: o que seria melhor para a Nação como um todo? Extirpar os cursos, salgarem-se os seus lugares, travando o acesso ao terceiro grau desta mocidade vocacionada ao direito? Ou ver esses cursos como instrumento de difusão ampla da cultura-cidadã, num impulso mais profundo da auto-estima de uma geração, independentemente das dinâmicas do mercado da advocacia brasileira? Mantenha a OAB os seus selos e as suas galas. Mas guarde alguma consonância na sua recomendação entre as escolas que mais aprovam os seus egressos na mesma Ordem, e as aquinhoadas com o farfalho da sua comenda. É precária a simetria de seus critérios de valor. Os neoformados, de competência reconhecida nessa Ordem, não são os do podium das excelências da lista egrégia.


A OAB não tem rival entre as velhas corporações para fazer praça de sua importância e respeito na sociedade brasileira. Há que permitir-lhe, por isso mesmo, o gosto e o exercício de preferências e recomendações. Não se dá conta, entretanto, do crime de imagem a que pode levar à presunção da falta do selo; o contágio da idéia de reprovação dos cursos sem o crachá. Nossa sociedade civil só tem a aplaudir que a OAB se pronuncie, à vontade, sobre os cursos de direito, no que deles espere a profissão. Ajude e complete o esforço de educação nacional, nesta área crítica da nossa mudança. Mas não queira substituir-se ao controle da qualidade que não é seu. Nem pode se compadecer com uma interveniência que soa mais ao País dos donos do poder que à nação dos bacharéis que não cessa de confrontá-los.


 


Jornal do Commercio (RJ) 13/2/2004