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Cura-te a ti mesmo

 

Fui professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Ciências Médicas. Uma experiência extremamente gratificante; a escola é um centro de excelência, tanto no que se refere a professores quanto a alunos, cujo nível é excepcional. Vocês podem, portanto, imaginar minha surpresa, desagradável surpresa, diante do episódio que, na última semana, foi notícia no RS e no Brasil. Resumindo: nas eleições para o Centro Acadêmico, venceu uma chapa da qual faziam parte dois homossexuais. E-mails foram enviados aos alunos fazendo alusões ao fato, usando a expressão “escória” e fazendo uma inacreditável recomendação: “No momento da consulta de uma bicha ou recuse-se (pelos meios cabíveis em lei) ou trate-o erroneamente!!!”. Frase que, a propósito, associa-se às manifestações homofóbicas ocorridas no país, inclusive com violentas agressões físicas. A reitora Miriam da Costa Oliveira manifestou de imediato sua repulsa e informou que a universidade instituiu uma comissão de sindicância para investigar o caso, o que também será feito pelo Ministério Público.

Alguém poderia ponderar que se trata apenas de uma piada – piada de mau gosto, mas piada, não muito diferente das agressões que, por exemplo, caracterizavam e ainda caracterizam o trote universitário. Mas há duas coisas a considerar aí. Primeiro, a advertência de que, na recusa da consulta ao homossexual, o médico ou futuro médico deveria estar atento à lei; a ponderação, do tipo “falando sério”, mostra que não se tratava só de gozação. Mas, mesmo que fosse brincadeira, seria inocente essa brincadeira? Lembremos o texto do doutor Sigmund Freud “O chiste e sua relação com o inconsciente” (1905): nem todo humor é inocente. Há piadas que, claramente ou disfarçadamente, expressam fantasias inconscientes, não raro agressivas, e não raro de natureza sexual.

É possível transformar esse limão numa limonada. A medicina é uma profissão em que as certezas absolutas são exceção, não a regra; médicos têm de aprender com seus erros. E isto pode ter ocorrido: os estudantes que foram alvo da agressão disseram a ZH que haviam sido procurados por um dos autores dos e-mails e que este se havia desculpado. Bom sinal. Mas é preciso ir mais adiante e discutir uma questão que é fundamental: como podem o estudante de Medicina, o médico, entender e elaborar seus próprios problemas, evitando condutas agressivas ou mesmo perigosas? O provérbio latino Cura te ipsum, citado por Jesus (em Lucas, 4:23; lembremos que Lucas era médico) mostra um caminho. É preciso criar, nas faculdades de Medicina, instâncias de atendimento psicológico que abordem esses e outros problemas. O currículo ganharia muito com isso.

Zero Hora (RS), 14/12/2010