Fruímos hoje, em termos de governo democrático e de esquerda como o do Brasil, de condições únicas no lidar com as aspirações de mudança normalmente veiculadas pelas "ações afirmativas". Trata-se de saber se, diante desse clima limite de democracia, e de ampla entrosagem entre sindicatos e partidos, à primeira vista logrou-se nova e inédita transparência na acolhida das expectativas do país dos excluídos. É o que se poderia desenhar a partir do extremo da cultura assembleísta do PT, através da discussão infinita e das audiências públicas do Legislativo, a tornar talvez obsoleta a estratégia na pressão social, como sofrida dentro dos governos clássicos do status quo.
Como fica, neste quadro, a ação direta da sociedade civil, e como se pode neste caso conciliar a força representativa do Governo, com a atenuação dos movimentos das Ongs? Como se define o arranco histórico da aspiração à mudança diante do que o governo assumiu como a prioridade do Brasil do outro lado? É o que sugere a primeira dita ação afirmativa do Planalto, ligada ao estabelecimento do regime de quotas, para os socialmente menos favorecidos na universidade. A iniciativa não nasceu de qualquer pressão imediata, diretamente armada, como Minerva, na cabeça de Júpiter, no Ministério da Educação.
É como se um primeiro regime, nascido da prática do assembleísmo de décadas, partisse para uma primeira consagração de novas normas de mobilidade social, adentrando o aparelho. As quotas traduzem, exatamente, o forçamento das condições naturais de acesso, e respondem a um imperativo de justiça social, e de mudança profunda, acolhida pelo sistema. Mas a sua implantação viverá, ainda, das hesitações - se não dos paroxismos - dos vaivéns de uma exigência social, que não passou, na crônica deste processo político, por todos os estágios em que o seu dictum final não tem controvérsias, colhe-se, como o jorro de um inconsciente coletivo que chegou ao plano de poder e da vontade de Estado.
O projeto de lei do Prouni - inclusive reforçado, afinal, com a determinação de medida provisória - refletiu a riqueza de uma trajetória da demanda profunda, deixada ao seu próprio ritmo e à sua própria espontaneidade? Respondeu o governo, realmente, à melhor opção? Questiona-se se a nova norma exprime, no sentido do assembleísmo petista, um consenso aquecido, e trabalhado por uma pulsão coletiva, que finalmente vem à realidade. A prática desta "ação afirmativa" sem os dutos da afirmação prévia pode criar confrontos de prioridade, negaças inerciais, perplexidades de respostas, pelos próprios beneficiários, que talvez não se reconheçam frente à pulsão original do que pretenderam, ou deixaram o Estado cooptá-lo.
Na ampliação do acesso ao terceiro grau, o ministério confiou, ao mesmo tempo, na mudança da abertura de oportunidades de ensino universitário, a um sistema de oferta, em 80%, ligado à compra da educação no mercado. As cotas favorecem a retomada da finalidade social do ensino, reordenando, no âmbito particular, o seu sentido filantrópico, e insistindo sobre a dimensão essencialmente pública que reveste esta atividade, prestada no âmbito particular ou estatal. Mas este elastecimento do ingresso não se afastará de um aumento da disponibilidade dos campi governamentais na utilização mais intensa da sua capacidade instalada. Qual a freqüência, por exemplo, dos cursos noturnos nestas casas de ensino?
As cotas estão monopolizando a temática da "ação afirmativa". A seu lado há que mobilizar a opinião pública para outros desempenhos, já passados ao protesto e que começam a incidir sobre o Judiciário, como alegados atentados à propriedade ou à ordem pública. Da invasão temporária de terras pelo MST, à destruição de plantações de soja pelos agricultores da Reserva Raposa do Sol em Roraima, à ocupação de prédios públicos em várias capitais, como reação à demora dos assentamentos rurais. Ou agora da inédita iniciativa em municípios cearenses de grupos comunitários recorrendo a alto-falantes para denunciar a malversação dos cheques do programa bolsa-família. O barulho a desoras viola a lei do silêncio ou perturba o fato consumado deste desvio do dinheiro novo para as clientelas de todo o sempre?
A consagração do Prouni não pode servir de acalmia, nem de compensação ao estado de mobilização continuada que pede a sociedade civil, despertada por um governo como o de Lula. O PT no Planalto não sai da praça pública, nem do assembleísmo, tanto a mudança paulatina não perde o gume do compromisso com a transformação social.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 21/01/2005