Desde 1964 têm editoras brasileiras lançado coleções de livros subordinados a temas. Das primeiras foi a de Guimarães Rosa, Otto Lara Resende, Carlos Heitor Cony e outros. Assunto: os sete pecados capitais. De então até hoje outras coleções vieram provar a atração que uma literatura temática exerce sobre grande número de leitores. De repente, surgem contestações: o escritor não deve aceitar encomenda.
Por que não? Se o livro for de análise histórica, por exemplo "A Segunda Guerra Mundial", ninguém contesta que vários autores se unam a fim de estudar o conflito, como surgiu? Quais foram suas conseqüências?, e assim por diante. Já o escritor que tira a histórias de si mesmo, que as faz emergir de suas imagens internas, de sua percepção da condição humana, de suas memórias de infância, de sua compreensão do amor e do ódio, de sua compaixão pelas dores de cada um - então não pode.
O lançamento de mais uma coleção temática, "Os anjos de branco", encomenda de uma entidade de enfermagem, começou a chamar a atenção da mídia. A idéia é, no caso, mostrar a profissão dos que se dedicam ao tratamento de doentes e fazem com que os hospitais e as clínicas funcionem. Como fui o organizador da coleção "Anjos de branco", e autor de seu primeiro título, acho estranho que se queira promover uma espécie de censura a quem escreva sob encomenda. A pintura, a escultura e a arquitetura vivem praticamente de encomendas: elas são a sua base.
É como se houvesse um propósito de enclausurar o escritor numa torre de marfim, com esta ordem: "Escreva o que quiser, mas não aceite encomendas, fuja de qualquer influência". Atender a essa ordem equivaleria a isolar a literatura da vida normal de cada um e exercê-la em nível quase desumano, quando o lema, não só do escritor, mas de qualquer pessoa que pense, é: "Nada do que é humano me é estranho".
A estética da recepção - imaginada por analistas literários alemães do século passado - defende a tese de que o escritor escreve por encomenda dos leitores. Quem lê, espera do seu autor preferido as emoções que tivera em obras anteriores. Isto é: o leitor como que encomenda ao seu escritor o livro que ele quer.
Tal como nas artes plásticas, o aceitar o escritor a encomenda de um grupo de pessoas, de uma comunidade, ligada a uma profissão, é legítimo e honesto. Se o livro será obra-prima, ou não, é outro assunto. A verdade é que, só meio século depois da morte de um escritor, poder-se-á saber ter sido ele bom ou não. Foi o prazo que Stendhal deu a si mesmo para se tornar famoso. E acertou.
No caso específico da coleção "Anjos de branco", aceitei escrever o romance e dirigir a série a pedido de Gilberto Linhares, que preside o Conselho Federal de Enfermagem e comandou a campanha para que os enfermeiros e enfermeiras fossem considerados como detentores de curso superior, o que é verdade, mas precisava estar em lei.
Assinou-a José Sarney, quando Presidente. Mais: enfermeiros que tenham curso de pós-graduação podem receitar e analisar prontuários. Esses atos, juntamente com o aperfeiçoamento do sistema de educação nas faculdades de enfermagem, deram uma base mais sólida à profissão.
A idéia de uma coleção de livros em que os escritores focalizassem profissionais da saúde foi parte do movimento geral de chamar a atenção para o setor. Depois de meu romance, "A dor de cada um", cinco outros foram escritos: "Maria da Paz", de Arnaldo Niskier; "Guilhermina, enfermeira e tia da República", de Carlos Nejar; "Ana Nery, a brasileira que venceu a guerra", de José Louzeiro; "Os pecados da santa", de Marcos Santarrita; e "As claras manhãs de Santa Clara", de Helena Parente Cunha. Paulo Coelho e Carlos Heitor Cony estão entre os seguintes.
Lembro-me de ter lido que um amigo perguntou a G. K. Chesterton: "Por que você não escreve um livro sobre São Francisco de Assis?" Chesterton escreveu, e é um dos melhores já feitos sobre o santo. Pode-se chamar a sugestão do amigo de "encomenda"? No plano de bibliotecas populares do município do Rio de Janeiro, escolhi o nome de José Lins do Rego para uma biblioteca inaugurada no Dique, bairro situado na comunidade do Jardim América.
Numa das sessões da Academia Brasileira de Letras, meu confrade Lêdo Ivo comentara que o nome do grande escritor paraibano ainda não fora dado a uma biblioteca no Rio. Como diria Jânio Quadros, fí-lo. Foi uma "encomenda" que recebi? A verdade é que vivemos num mundo inter-relacionado e, por muito solitários que estejamos, tinha razão o poeta John Donne ao dizer que "nenhum homem é uma ilha".
Em relação à classe dos enfermeiros, conta o Conselho Federal de Enfermagem com perto de um milhão de associados. Cada Estado da Federação tem um Conselho Regional da especialidade. Uma vez por ano, comparecem eles a congressos nacionais. O de 2001, realizado em São Paulo, atraiu seis mil participantes.
O deste ano, a se reunir em outubro próximo, no Recife, deverá, de acordo com as inscrições, ter mais de oito mil enfermeiros e enfermeiras. Quando soube, por Gilberto Linhares, que havia aquela quantidade de enfermeiros no Brasil, comentei: "É um país doente". Ele me respondeu: "Não. Precisamos do dobro. O normal, em qualquer país do mundo, é haver sete vezes mais enfermeiros do que médicos. O número de médicos no Brasil está entre 250 e 300 mil. Temos de chegar, portanto, a dois milhões de profissionais de enfermagem".
O que se pede é que não se tire do escritor a liberdade de escrever o que ele quiser e como quiser. As palavras emergem do corpo e do pensamento, emergem da memória e da experiência, e são como pedras erguendo um mundo novo, criando gente, arrebanhando imagens e paisagens, vistas ou pensadas. O que se exige de quem as cria é que seja fiel a si mesmo, domine os instrumentos de sua língua e saiba avançar pelos tortuosos caminhos da emoção de viver.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 14/08/2002