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Cuidado —frases feitas

 

Algumas expressões somem por algum tempo do nosso radar e, de repente, voltam com grande gala. Nos últimos dias, ouvi três pessoas se dizendo numa "sinuca de bico". Entendi, mas, pensei a respeito e, como nunca fui de sinuca, eu é que fiquei na própria. O que significa, tecnicamente, sinuca de bico? Sinuca tem bico? Ou é só um clichê, uma frase feita, que, como todas as frases feitas, nos saem da boca sem precisarmos pensar?

O mesmo quando se diz que fulano foi "barbaramente torturado". Mas pode-se ser delicadamente torturado? E por que se diz que alguém tem "olhos de lince"? Já li que os linces não enxergam tão bem e que há registros de linces míopes. Donde nem os linces têm olhos de lince. Intriga-me também a expressão "molhado como um pinto". Urbanoide que sou, tenho pouca intimidade com pintos. Só conheço aqueles das lojas de aves e nunca vi nenhum molhado.

Frases feitas são uma espécie de joanetes da língua. Surgem do nada, instalam-se no léxico, também têm consistência óssea e, como os joanetes, não servem para nada, exceto para doer. As frases feitas fazem doer os ouvidos.

"Memória de elefante" —quem já mediu? E se houver elefantes amnésicos? "Fedendo como um gambá"— só posso acreditar nisso por ouvir dizer, já que não me lembro de quando cheirei um gambá pela última vez. "Matar um leão por dia"? Isso se tornou impossível. Hoje, até os mais sangrentos safáris têm de respeitar restrições quanto às temporadas de caça. "Mudo como um peixe"? Tudo bem, mas nem toda comunicação é verbal, e quem garante que os peixes não tenham um vocabulário especial, à base de bolhas, para se comunicar?

E começar uma frase com "Na verdade"? Na verdade, a própria expressão é um clichê. Se escrevê-la, experimente cortá-la e veja se faz diferença. Nenhuma. Por acaso alguém começa uma frase com "Na mentira"? Só o Bolsonaro, e até ele faz isto sem dizer.

Folha de São Paulo, 28/10/2023