Por causa do sofrimento, ou da idade, ou de qualquer outra razão, não se lembrava do que tinha sido acusado
Steven Truscott, 62 anos, um canadense condenado por assassinato quando tinha apenas 14 anos, foi finalmente absolvido pela Justiça do Canadá, que concluiu por erro judicial. Steven Truscott havia sido acusado do assassinato de Lynne Harper, 12 anos, em uma pequena cidade do sul da Província de Ontário. Ambos estudavam juntos na época. Truscott sempre defendeu sua inocência. Folha Online
COMO ERA de esperar, o julgamento atraiu uma verdadeira multidão ao tribunal. Em pouco tempo os lugares estavam tomados, e o juiz mandou instalar um telão para que as pessoas, na rua, pudessem acompanhar os trabalhos da corte.
Que foram muito rápidos. Tanto o promotor como o advogado de defesa fizeram pronunciamentos breves, já que as provas a favor do suposto réu eram mais do que concludentes. Finalmente o juiz, absolutamente contrafeito com aquela insólita situação, declarou o réu inocente de todas as acusações que lhe haviam sido feitas. Dirigindo-se ao ex-acusado, perguntou se tinha alguma coisa a dizer, antes que a sessão fosse encerrada.
O homem tinha, sim, alguma coisa a dizer. Na verdade, e isto transparecia em sua fisionomia, tinha muitas coisas a dizer. Era um senhor já de idade, que, contudo, aparentava mais do que os 62 anos que na verdade tinha; alquebrado, o rosto cheio de rugas, a expressão deprimida, ele mostrava, na aparência física, sinais do sofrimento pelo qual tinha passado.
E foi sobre isso que falou, sobre os 48 anos -quase meio século!- em que fora réu de um crime que não havia cometido. Praticamente, disse ele, minha vida girou em torno desta acusação. Uma vida que, em realidade, não havia vivido. E agora? Quem lhe devolveria as noites não dormidas, as lágrimas derramadas? Quem lhe devolveria a afeição dos parentes e dos amigos que o haviam abandonado, porque não queriam ligar-se a um assassino? Quem lhe devolveria a honra, a dignidade? Quem lhe devolveria a alegria de viver?
Quando terminou seu pronunciamento, fez-se um pesado silêncio, ao cabo do qual o juiz disse algumas palavras que deveriam resumir um pedido de desculpas, mas que claramente não convenciam a ninguém. E deu o julgamento por concluído.
O homem recebeu cumprimentos de muitas pessoas, inclusive e principalmente desconhecidos. Você agora deve estar feliz, disse-lhe uma senhora, com os olhos cheios de lágrimas.
Não, ele não estava feliz. Estava profundamente infeliz, angustiado mesmo. E o motivo desta angústia, desta infelicidade, ele não poderia comentar com ninguém. O fato é que, por causa do sofrimento, ou da idade, ou por qualquer outra razão, não se lembrava mais do que tinha sido acusado. Simplesmente não lembrava. Parecia-lhe que tinha algo a ver com uma garota risonha que conhecera na adolescência e pela qual se apaixonara perdidamente.
Só que não lembrava seu nome, nem seu rosto, nada. Esquecera. Esquecera completamente. Esta lembrança afundara nas águas lodosas de seu passado.
Portanto, ele tinha, sim, cometido um crime. Que crime era esse, não sabia dizer. Mas sabia que pagaria por ele pelo resto de sua vida. Porque a todo crime corresponde um castigo, justo ou injusto.
Folha de S. Paulo (SP) 3/9/2007