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A cor da nossa febre

 

Na véspera do acidente que levou o "Titanic" para o fundo do oceano, houve uma reunião no salão nobre do navio a fim de que se escolhesse a cor que deveria predominar no baile que os passageiros estavam programando para a noite anterior à chegada a Nova York. Na antevéspera do naufrágio, a sociedade local, ou seja, os passageiros da primeira classe, estava dividida: havia um grupo a favor do amarelo, outro a favor do azul-turquesa. Os debates foram prolongados e registrou-se um empate técnico. Chamaram o comandante do navio para desempatar. Àquela hora, seguramente, o iceberg que arrebentaria o navio já estava em rota de colisão com o casco do "Titanic". Mas o velho lobo-do-mar adotou a posição que nós, brasileiros, muito conhecemos: ficou em cima do muro (embora estivesse em cima de águas geladas). Disse que, ouvidas as consciências de cada qual, os passageiros podiam vir de amarelo ou de azul - ali reinava a tradicional democracia, o decantado liberalismo do Império Britânico. Não é o caso de compararmos o Brasil a um navio condenado. Por mais pessimista que eu seja, não chegaria a tanto. Mas nosso ufanismo infanto-juvenil tem alguma coisa a ver com a confiança que depositamos num colosso insubmergível. Garantem que isso jamais acontecerá - o Brasil jamais cairá no abismo, porque é maior do que o abismo. Muito bonito. Folgo que assim o seja. E, se dependesse de mim, tudo faria para que continuasse assim, maior do que o abismo. Mas fico desconfiado quando constato a mediocridade de nosso debate político. Perdemos espaço e tempo discutindo a cor de nossas fantasias cívicas, se devemos eleger mulheres ou não, se os prefeitos do PT foram mortos por motivos políticos ou pessoais. Enquanto isso (ou "entrementes", como nas histórias em quadrinhos), um mosquito vagabundo com nome em latim nos remete ao tempo da febre, essa sim, amarela.


 


Folha de São Paulo em 03/03/2002

Folha de São Paulo em, 03/03/2002