Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Continente e conteúdo

Continente e conteúdo

 

Uma frase pronunciada pelo presidente Lula durante um jantar na embaixada do Brasil em Tóquio quase provocou outra tensão diplomática entre Brasil e Argentina. O principal jornal do país vizinho, o "Clarín", reproduziu informações da coluna do jornalista Fernando Rodrigues, na Folha, de que o presidente brasileiro disse a interlocutores que "temos de ter saco para aturar a Argentina". A frase, entretanto, foi traduzida pelo diário como "hay que tener bolas para bancar a los argentinos", o que pode ser interpretado não no sentido que tem a expressão em português, de ter paciência, mas sim algo parecido com "temos de ser machos para agüentar os argentinos". Folha Brasil, 31.05.2005

 


Como atesta qualquer tratado de embriologia, os testículos nascem em um recôndito lugar do abdome, mais precisamente junto aos rins. Ali poderiam ficar, desempenhando tranqüilamente sua função de gerar os espermatozóides que darão continuidade à espécie. Mas, por alguma razão, os testículos (e nisso, como no resto, embora sendo dois estão sempre de acordo) não se resignam com tal posição anatômica, por eles considerada incompatível com a dignidade de órgãos que, afinal, representam a masculinidade. Junto aos rins, junto às tripas? Jamais. De modo que trataram de migrar. Num movimento tipo invasões bárbaras, começaram a descer abdome abaixo. Queriam mais luz. Queriam visibilidade, queriam exposição. Queriam criar uma imagem própria, porque, como se sabe, imagem é tudo.


Para desagradável surpresa de ambos, contudo, não ficaram à mostra como acontece com os seios. Foram dar, literalmente, num "cul-de-sac", num fundo de saco, e, pior ainda, num engelhado saco de pele conhecido como escroto, palavra de óbvia conotação pejorativa.


A fúria de ambos foi enorme, e eles a despejaram no alvo mais próximo e mais inerme, exatamente o tal saco escrotal. Você é um saco, diziam sem cessar, você não passa de um medíocre desmancha-prazeres. O pobre escroto nada respondia. Estava acostumado a um papel subsidiário na anatomia; apenas obtinha algum consolo quando o seu dono -mas só quando não tinha o que fazer -coçava-o distraidamente (e nisso, ao contrário do que diziam os testículos, parecia obter certa satisfação).


De dentro do seu modesto invólucro, os testículos continuam se gabando: somos muito machos, repetem a todo instante, não temos paciência com os perdedores. E prometem que um dia virão à luz, proclamando ao mundo seu poder hegemônico sobre o continente.


Haja saco para aturar esses caras, pensa o escroto. Pensa, apenas. Saco, como se sabe, não fala.




Folha de São Paulo (São Paulo) 06/06/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 06/06/2005